“Querida Bárbara Carine: do quarto da guest house da Saint John´s University no qual estou hospedado até esta manhã, pela ampla janela horizontal de vidro vejo bem perto o lago que contorna a área dos prédios da universidade. Há uma escarpa de pouco declive e árvores de troncos esguios, alguns finos, altas como pinheiros. Não sei se são pinheiros. Daqui escrevo.

“Para compartilhar primeira e exclusivamente com você, minha doce nova amiga. Ontem, vencido o prazo dado no requerimento que você e eu assinamos, o qual questiona as normas da “consulta” à Reitoria, a tal “comissão especial” comunica, através de um arrazoado, que nega em totalidade tudo o que requeremos.

“Penso aqui com meus botões: será que devo insistir? Seria recorrer ao Reitor – que deve ter posto a assessoria jurídica para auxiliar na resposta da comissão -, depois recorrer ao poder judiciário etc., etc., etc.? Pense comigo: Será que isso vale a pena? Para que ficar dando murro em ponta de faca?

“Há tantas mais coisas importantes na vida para nós, e há muito sei ser o jogo político – como esse de disputar a Reitoria – sujo e pesado. Não gostaria de sujar-me. Não sou tão forte para carregar nas costas o peso que isso acarreta.

“Querida, deverei recuar. Combinarei uma reunião virtual para esta quinta-feira com o Professor André Gusmão e as pessoas dele. Umas horinhas mais para matutar sobre a vida.

Comunico isso a você nessa manhã tranquila aqui onde estou, enquanto bebo um café (não sei você, mas eu gosto muito de café forte e quente), louco para reencontrar minha filha esta noite em Nova York.

Beijos, Fernando.”

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Desde janeiro, principalmente a partir da invasão e permanência das tropas de Putin à Ukraine, a maior preocupação, como pai, era o bem-estar de Lys, filha que há dois anos residia em Kyiv quando o bombardeio teve início em fins de fevereiro de 2022. Apesar de que, a disputa para a Reitoria na UFBA tirava o sono.

Há quatro dias, desde o final da tarde de domingo 17, estava hospedado no campus da Saint John´s University, em Collegeville Township, Minnesota, a 120 km de Minneapolis, onde George Floyd havia sido sufocado até à morte pela polícia – gerando indgnação mundial.

Estava a convite do professor de ciências políticas Pedro A. G. dos Santos. Às expensas (passagens, hospedagem, alimentação e traslado) daquela instituição.

Aquele 20 de abril, no qual escrevi a mensagem acima a Bárbara Carine, amanhecia escuro, frio e nevado.

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Recém desperto, da cama olhei a tela do telefone celular no criado mudo. Li mensagem do professor André Gusmão, chefe do Departamento de Anestesiologia e Cirugia da Faculdade de Medicina-UFBA enviada horas antes. Fuso horário: 4 horas menos na parte dos Estados Unidos onde me achava em relação a Salvador da Bahia. Ou seja: na madrugada pedia para eu ligar de volta. Desconfiei. E liguei.

Queria me informar que estava renunciando ao “honroso convite” que ele, de livre e espontânea vontade, aceitara dois dias antes, oficialmente substituindo a professora Bárbara Carine, vice-diretora do Instituto de Química-UFBA, em candidatura a vice a meu lado. Gusmão, depois do aceite, foi pressionado e ameaçado a cair fora da disputa. A  indicação na lista tríplice para Reitoria da UFBA a ser confirmada ao presidente da República, seria formalizada dali a 40 dias.

A substituição foi acertada depois de desembarcar no Minessota Airport. No início da noite de domingo, 17/04, por reunião virtual entre Carine, Gusmão e este vosso criado, sentado no banco de carona do carro do professor Pedro A. G. Santos.

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Santos montara uma programação que, além de aulas e conferência incluia uma visita com dúzia de alunos, na manhã seguinte, ao exato local da tragédia de Floyd; na esquina e vias ao redor da “grocery” onde tudo teria começado para ele, depois da suspeita de ter pagado uma compra com nota falsa de dólar.

Aproveitei para conversar e entrevistar alguns ativistas anti-racistas de um “guarda-chuva” chamado Black Lives Matter, os quais abriram ali balcões de venda de “souveniers” de contestação ao racismo, com o rosto da vítima que se tornou famosa, e sedes de ONGs. Nos States tudo vira grana. E o que não vira dá teses acadêmicas e livros que não acabam mais!

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Bárbara Carine foi a pessoa responsável por viabilizar a possibilidade de se ter um projeto oposicionista, por uma UFBA inclusiva, diversa, em defesa da ciência e da vida, no certame. A 11 de abril havia oficializado nossos dois nomes como candidatos. Fato histórico que ela registrou, com enorme repercussão, em suas redes sociais.

Antes de aceitar o encargo foram necessárias horas e mais horas de negociações. Fora pressionada bastante, mas decidiu-se. Para depois, à primeira tempestade, dar no pé. O mundo é melhor que uma Reitoria da UFBA: a negrada aí presente pode arranhar a instituição, mas as estruturas dela permanecem intocável domínio branco.

Bárbara tem importante presença e dezenas de milhares de seguidores – para o bem ou para o mal – nos canais que mantém em redes, principalmente no Instagram, com a denominação “Uma intelectual diferentona”. Os ataques, achaques e assédios que sofreu depois do anúncio de sua candidatura ao lado deste escrevinhador a fez adoecer, informou ao desistir.

Depois que inscreveu nossa candidatura, não mais paramos de nos falar. Disse que “coletivos negros” da universiade haviam contactado, ou ela a eles. Porta-vozes de alguns disseram-lhe que iriam nos apoiar, mais por ela que por este escriba, tachado de “individualista”. Ensinaram a ela: antes de candidatarem-se, vocês teriam de consultar os “coletivos”. Tá!

Os “coletivos” estão aí desde quando? 2026 aproxima-se. Por que nunca chamaram ao debate? Por que não forjam seus candidatos? Papo! Sindicalistas da CUT, disse-me ela, telefonaram comprometendo-se a ajudar financeiramente a campanha. Outras organizações estavam contactando para apoiar.

Era a Bárbara Carine, não a este “leproso”, como designei a ela, o cabeça da concorrência, que estavam apoiando – vez que ela circula bem naqueles nichos.

Na manhã de 13 de abril, em Nova York, ao acordar para preparar-me para levar minha filha de oito anos à escola, Bárbara Carine havia deixado série de mensagens em meu WhatsApp em tom que revelava sua ansiedade. “Eu sinto muito, Fernando: Eu não tenho condições de seguir adiante”, li ao telefone.

Ficamos por toda a manhã trocando mensagens, em áudio e texto. Eu implorando, insistindo para que revisse sua decisão. Por volta das 13 horas percebi que havia perdido sua companhia.

Para que ela aceitasse já fora uma mão de obra! Deixei mensagem em sua caixa de e-mail. De Salvador, ela me contatou por chamada de vídeo num café no Brooklyn. No dia anterior, a professora Salete Maria, de estudos de gênero e líder do grupo de pesquisa JusFemina-UFBA, também em reunião por vídeo, havia dito que, em nossa parceria para a disputa, ante as circunstâncias de estar em Salvador, só aceitaria ser candidata ao cargo de Reitora, não vice.

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Na campanha que não houve à Reitoria da UFBA no primeiro semestre de 2022, de Nova York anunciei minhas pretensões. Sabia exatamente do que se tratava e dos ódios que atrairia. Sem ilusões quanto à correlação de forças extremamente desfavorável, muito menos pela distância geográfica que pela “tradição” do senso comum.

João Carlos Salles, reitor que presidiria todo o processo em compadrio com os esquemas de mando, tinha à sua disposição toda a máquina, a engrenagem azeitada e unida ao propósito do continuísmo.

O que ele e todas as viandeiras suas não contavam era com a insubmissão daquele pós-doutorando da UFBA naquele instante a um hemisfério de distância. No instante mesmo da formalização, que era fraudulenta desde o início de todo o processo, das inscrições de candidaturas a reitor e vice – por fraudulenta, por isso assumida cinicamente por seus patrocinadores como “informal” – de Nova York este escrevinhador teve de administrar a primeira crise.

Horas antes da formalização das intensões, rompeu-se a parceria feita pelos três meses anteriores, em reuniões virtuais, com a colega de estudos feministas da faculdade que já fora dirigida por Salles – ela, uma dissidente da maioria formada por outras colegas suas de estudos feministas e de gênero da mesma unidade acadêmica.

Surgiram duas visões contrapostas de como proceder. Primeira: inscrever-se ou não no processo fraudulento patrocinado, a partir da sede da Reitoria, pelos sindicatos de professores (Apub), de técnicos-administrativos (Assufba) e pelo Diretório Central dos Estudantes, desavergonhadas correias de transmissão de facções eleitoreiras político-partidárias que tutelam as universidades há décadas.

Este candidato entendia ser necessário cumprir o rito da inscrição, mas, em assim fazendo, no instante mesmo da formalização denunciar como fraudulento todo o processo, por ato de ofício, exigindo sua nulidade e cumprimento da legislação em vigor sobre a matéria. A parceira convenceu-se, ou ao menos deixou transparecer ter se convencido, com os argumentos.

A segunda visão contraposta: qual dos dois se apresenta candidato a reitor(a). Nesse tópico não houve acordo. Concordância na posição crítica aos desmandos e assédios que se perpetuam na administração: absoluta. Ordem de prioridade – o gênero, mulher, representada pela parceira; ou a cor/raça, negra, representada pelo então parceiro, quanto à falta de representatividade no topo da hierarquia acadêmica na UFBA e alhures.

Uma e outro parceiros expuseram seus argumentos, prioridades e particularidades. Fato facilmente demonstrável: na galeria de quadros de retratos expostos na sala do Conselho Universitário, a esmagadora maioria é de homens. Não a totalidade, porque a UFBA já teve no topo duas mulheres, duas reitoras. A representatividade negra é que nunca se fez presente no topo. Nesse sentido a UFBA reproduz o padrão de poder de sempre na mão de brancos. Não seria a hora de enfrentar isso?

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Já havia solicitado por e-mail uma conversa com Bárbara Carine, havia nos cruzado três ou quatro vezes, a maioria de forma fortuita e rápida, sem nunca termos trocado ideias profundas sobre absolutamente nada.

O que sabia era ser ela professora do Instituto de Química. Nos conhecemos rápida e pessoalmente fazia cinco, seis anos, quando dividimos a coordenação de mesa de apresentação de resultados de pesquisas no campo do combate à violência e ao racismo.

Uma segunda vez, no saguão da agência do Banco do Brasil no campus da UFBA em Ondina, ela, demonstrando surpresa, sem acreditar que eu era eu mesmo. Parece que tinha lido algo dias antes sobre minha morte. Sim, professora, acho que brinquei, sou eu – ressuscitado. E, no caso dela, ao contrário de outros ou outras, parece que ficou satisfeita com o rebate falso, aliviada por eu ainda estar vivo naquele dia. Vivo e com dívidas no banco, aqui estamos!

A terceira e derradeira vez nos cruzamos na cerimônia de cremação de professor amigo nosso, Nelson Bejarano, também de Química, esposo de grande amiga minha na Facom, a professora Simone Bortoliero.

Ao aliar-se ao projeto de oposição em abril de 2022 à Reitoria, informou Bárnara Carine que perdeu a graça, devido ao assédio sofrido. Gente dos partidos com os quais ela simpatizava: PSTU, PSOL, PCdoB, PCB etc. E, mais difíceis, os “coletivos” negros, de gênero, de diversidades, feministas “do grelo duro” na definição papal de Luiz Inácio Lula da Silva, atual presidente da República brasileira.

De Nova York, completamente sozinho com meus botões, eu esperava no que isso iria dar. Talvez dê na próxima…

(Este é o segundo da série de artigos sobre campanha negra de oposição à Reitoria da UFBA em 2022)