NA EUROPA, onde me encontro – enquanto escrevo, em rápida passagem de fim de semana em Kyiv (Kiev), Ucrânia -, amigas e amigos antigos ou recentes provocam-me sobre a situação política do Brasil atual.
Invariavelmente divergimos. Principalmente afirmo estarem mal ou parcialmente informados sobre a jovem democracia que a sociedade, aos trancos e barrancos, tenta consolidar à luz da Constituição de 1988.
Todos intelectualizados, de esquerda. Não da esquerda dogmática, mal informada e mistificadora, como significativa parte das viúvas do lulopetismo.
Quais fontes orientam seus juízos a respeito da conjuntura política brasileira desde que, a partir de 2013, multidões saíram às ruas exigindo mudanças em nossa então cultura política?
Esses amigos são formados no ideário de analistas, comentaristas, ensaístas e correspondentes de reportagens da mídia de seus países.
Com base no Rio, São Paulo e Brasília, onde circulam comumente os correspondentes da mídia estrangeira enviados ao Brasil?
No eixo Leblon-Ipanema-Copacabana, Avenida Paulista e Plano Piloto da capital federal.
Entendem tanto da complexidade do Brasil profundo quanto eu de Manchúria.
Frequentam os mesmos clubes, restaurantes, bares exclusivos do Planalto Central, da zona sul carioca e dos Jardins em São Paulo, trocando figurinhas entre si.
Exceções há. Porém o que prevalece no noticiário que informa ou desinforma a chamada “opinião pública” europeia é a visão neocolonialista, distorcida, paternalista desses profissionais, com salários pagos em euro ou dólar.
Mal se esconde a arrogância dos mesmos, referendada por comentadores interesseiros – ainda que titulados de “doutor” ou de “intelectuais”.
Emulam um grau de erudição, de compreensão dos problemas brasileiros que nós, pobres tapuias que aqui estamos na lida cotidiana, não compreenderíamos por nós próprios.

AFORA PORTUGAL, com respeitável pensadora das Ciências Sociais e Humanas e sua profunda consciência crítica da realidade, noutras praças interlocutores demonstram incômodo com as opiniões que me solicitam a respeito do Brasil do direitista Jair Bolsonaro.
O que se chama de “governo de direita” no país por duas décadas administrado, a partir de Itamar Franco a Dilma Rousseff, por forças de centro esquerda e de esquerda, completa agora dois meses de posse.
Mas é o pior que poderia ter se sucedido em nossa história, dizem.
Na Suíça, onde fiquei para uma roda de conversas, convidado por uma entidade influenciada pelo pensamento de Paulo Freire, discutia-se o movimento social de educação popular antirracista.
Antes e depois, entretanto, fui questionado. Se, de fato, com a vitória de Bolsonaro existe mesmo democracia no Brasil. A resposta é afirmativa, para a reação de incredulidade de quem ouve.
Para destruir a democracia o governo de Jair Bolsonaro, eleito cumprindo as regras do jogo iguais para todos, teria de primeiro destruir, rasgar a Constituição – que, ao fim e ao cabo, estabelece aquelas regras.
- EVENTO NA ROSA LUXEMBURG STIFTUNG : MST e BIG BROTHER
EM BERLIN (Alemanha), que gosta de mim, encontro-me na exata noite em que um braço do partido Die Linke (A Esquerda) promoveu um “debate” oferecendo um palco dividido pelo ex-deputado (PSOL-RJ) Jean Willys e uma militante goiana do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), Elizabete Cerqueira.
Debate é força de expressão porque ali estavam pregando unicamente a convertidos. A moderadora da mesa, brasileira, nada moderava.
Estavam ali para falar, “a partir de nossas próprias estórias de vida”, como disseram, “dos rumos que o Brasil está tomando”.
Pura conversa-mole. Engana trouxas, para um público que aplaudia entusiasta qualquer lugar-comum do casal de expositores.
Meus amigos alemães, mesmo os que divergem de mim nesse ou naquele ponto, definiram isso pejorativamente de “tietagem”.
A sensação é a de total inversão da realidade objetiva.
Substituída essa, via retórica musical aos ouvidos ali presentes, a uma realidade paralela. Que transporta os partícipes do conclave a um mundo de fantasias, achados e perseguições imaginários.
O espaço destinado ao evento entupiu uma hora antes, 19h. Havia entre 300 a 400 pessoas, talvez mesmo 500. Seguro: 99% de brasileiros que vivem ou passam por Berlin.
Fácil saber: a língua usada foi o português. As cinco ou seis pessoas (conferi) que usavam fone de tradução simultânea se destacavam como avis-rara na plateia ignara.
Quem interagiu com os palestrantes em geral se declarou militante, ativista e membro de “coletivos” de brasileiros organizados – no mais, em torno de temas da cultura. Um sujeito empunhava um berimbau.
Todo mundo gente boa e legal, que os da mesa souberam agradar e por ela foram ungidos à condição de anjos.
Uma pesquisadora de religiões, não me lembro se da UFRJ ou da Universidade Federal Fluminense, fez a melhor pergunta da noite.
A dupla na mesa tinha algo a dizer sobre dois assuntos a ela sérios?: terraplanistas e sínodo da Amazônia?!
Tirante os migrantes brasileiros, que ao falar faziam questão de regozijar-se do status de residirem, sabe-se lá a quantas, na Alemanha – para onde, em coro de “fica! fica!” convidaram Jean Willys também se fixar -, os poucos alemães presentes pareciam ter alguma relação pessoal, afetiva, ou com ONGs do Brasil.
Caso dos meus amigos, que aí viveram, se interessam e falam a língua de Camões.
Embora depois confessaram não entender muito bem onde queriam Willys e Cerqueira chegar com tamanho bolodório e verborragia.
Tudo um tanto quanto confuso para gente de linguagem concreta.
De Willys concederam admirar a eloquência, mas isso é dizer o óbvio de um parlamentar. Ex-ganhador de meio milhão e fama no BBB da Globo, provavelmente já orientado por media training.
Bocejavam enfadados quando a líder do MST abria a boca com chavões desconexos decorados de cartilhas sobre resistência e “#Ele não!”
Minha anfitriã alemã e três conterrâneos seus de mesma nacionalidade, a maioria eleitores do Die Linke e do Die Grünen (Os Verdes)*, mais duas brasileiras ali radicadas há mais de década (essas, ao menos uma, mais esquerdistas que aqueles), fomos todos ao evento.
A pé, vez ser o local próximo à residência deles todos: Café Refúgio, um espaço que ampara refugiados e tem sido usado pela Rosa Luxemburg Stiftung (fundação do partido Des Linkes) para atividades de porta-vozes da esquerda simpática ao bolivarianismo.
Desde o primeiro turno das eleições que consagrou nas urnas Jair Bolsonaro ao menos três eventos, com convidados da esquerda lulopetista falando a mesma coisa, já ali se realizou.
Por sinal, o clima no ambiente naquela noite era o de que a disputa eleitoral para a Presidência do Brasil continua.
Não se concede quaisquer legitimidade ao democraticamente eleito em outubro de 2018.
Da mesa, os palestrantes pontuavam suas falas sobre “luta de classes” (Bete), ou a “atuação descarada da Justiça” por prender Lula. Sobre quem, para Jean Willys, mesmo agora depois de tantas reafirmações em diversas instâncias, não há “nenhuma prova de que cometeu qualquer crime”.
Citou-se mentes a eles exemplares, tais como Che Guevara, Jessé Souza (autor de A elite do atraso), Carlos Mariguella e o filme de Wagner Moura sobre este personagem exibido no festival de cinema berlinense dias antes, que fez Willys chorar pra caramba, como propalou.

Lula teria tirado “43 milhões da pobreza”, bradou Willys. Sem nada dizer quanto o Petrolão e o Mensalão a base aliada, e pilantras Odebrecht, OAS, Eike Batista e Sérgio Cabral engoliram.
Tampouco nada disse sobre onde agora estão aqueles supostos 43 milhões, já que a derrocada do projeto de poder lulopetista deixou saldo de 14 milhões de desempregados, mais de 60 milhões de homicídios por ano na década, deflação e crescimento negativo pouco visto antes na história da República..
Pateticamente, a bem-articulada conhecedora de “contradições do sistema capitalista”, representante do MST, conclamou todos a transformarem “em mantra” o slogan “Lula livre!”, que veio sendo repetido desde o primeiro instante do início da atividade.
Herr Willys esforçou-se em ser professoral mas, para meus colegas alemães, exagerou no tom.
Garantiu e repetiu três ou quatro vezes ter sido “um deputado honesto”. Ficou feio, ouvi depois, porque ninguém perguntou nem isso estava em questão.
Desqualificou a vitória por 58% dos votos de Bolsonaro, atribuindo-a, em suas sábias palavras sob aplausos, a “uma histeria coletiva” que teria levado “a maioria da população ter votado e eleito um candidato que não disse nada”.
“Uma população inteira”, vituperou o ex-Big Brother Brasil, ou Big Bosta Brasil que lhe catapultou a carreira do show business e, consequentemente, daí a outros horizontes, “Uma população inteira”, repita-se, “renunciou a um debate profundo para aderir a fake news“.

“Na Câmara dos Deputados a presença do homossexual não havia, até eu chegar!”, disse a uma plateia boquiaberta. Por isso teria sido escolhido “o inimigo dos reacionários”.
Durante o processo de impeachment, que “foi um golpe, mesmo sem ser PT eu assumi o protagonismo da defesa do mandato de Dilma. Como defesa da democracia”.
Na vez que lembrou Marielle Franco, vereadora do PSOL carioca brutalmente assassinada em março de 2018 por milicianos, parte dos quais convivas da família Bolsonaro, Jean Willys destacou antes de tudo o protagonismo dele em defesa das causas LGBTQ.
“Fui eu que levei para o PSOL esta pauta”, revela Willys. “E Marielle”, acrescenta ele, “deu continuidade a essa pauta”.
Tornando-se, como sabe, vítima e mártir. Coisa que Willys garante não querer ser. Nem herói, acreditem!
Para ele, aliás, a prisão de Lula e a morte de Marielle Franco são equivalentes.
Demonstrariam ser “a nossa democracia oca, é de fachada. Não existe democracia” no Brasil – sentencia, para delírio da brasileirada usufruinte da democracia alemã de Angela Merkel (CDU).
Com sua renúncia a assumir o terceiro mandato de deputado eleito pelo Rio de Janeiro, diz cumprir o papel do menino da fábula que diz estar “o rei nu”.
“Estrategicamente eu me retirei e dei um recado poderoso (mostrando ao mundo) o esgarçamento de nossa democracia”.
Seu auto-exílio na Europa também tem a ver com a impossibilidade de se divertir, devido a ameaças que diz sofrer desde 2011.
Parte do público urra quando o ex-deputado federal pelo Rio de Janeiro afirma, quase comovente:
- “Eu quero ir para a balada! Eu quero ir para a melhor balada aqui de Berlin!”
O ex-Big Brother e deputado de esquerda brasilis ainda utiliza a ocasião para uma espécie de apelo:
- “Eu tenho de arranjar um trabalho (leia-se emprego) para viver do lado de cá”.
Do Atlântico. Não confundir com Avenida Atlântica.
- — (*) Correção: Na primeira versão deste artigo, de forma imprecisa atribuí serem aqueles amigos eleitores do SPD (Partido Social Democrata), em atividade desde 1863 e impiedosamente perseguido na era Hitler. O partido Os Verdes alemão foi fundado em 1993 e A Esquerda em 2007.
Texto impecável. É impressionante a permanência de pessoas com alguma formação acadêmica, nestas rodas nacionais e internacionais de debates vazios e que promovem quase sempre, raiva em tom de violência. A diferença entre um grupo de torcida organizada de futebol e este, parece ser apenas o assunto. E nao me refiro a violencia aqui, mas a total ignorancia no debate de ideias. Mas como diz o velho ditado, religiao, futebol e casamento nao se discute, a torcida de futebol ainda sai superior na comparaçao.
O Brasil parece mesmo estar metido num labirinto político sem nenhuma perspectiva de saída. De um lado, a esquerda empoeirada com seu discurso pitoresco que tenta remontar os primeiros decênios do século XX; como se não bastasse, do outro lado, está a direita, que traz toda essa patuscada com que os brasileiros vêm tendo que se familiarizar: “Ministério Deus, Pátria e Família”; hino nacional obrigatório nas escolas; retorno da Educação Moral e Cívica como disciplina escolar, Marxismo Cultural, etc.
Parece que havendo obstinação, sempre é possível piorar mais um pouco.
ótimo seu texto, Fernando! Dificil suportar a sindrome da “conversa-mole. Engana trouxas”