Facilmente identifico como ato fundador da minha consciência enquanto negro, favelado, filho de mãe viúva no Brasil, a violência de um ato praticado por um serviçal negro responsável pela segurança e vigilância de uma empresa de um cursinho pré-vestibular para o ingresso na universidade federal pública brasileira.

Estava na adolescência, atuando já para a valorização da comunidade pobre na qual nasci. Com o segundo emprego fixo de carteira assinada.
Tinha sido contratado como auxiliar no Departamento de Publicidade do competitivo Jornal da Bahia, veículo de grande importância para a imprensa baiana, fundado e então propriedade de João Falcão, membro – como Jorge Amado e tantos outros intelectuais – do Partido Comunista Brasileiro.
Quando comecei, trabalhavam no setor, localizado no andar acima da Redação no prédio próximo à Barroquinha, Salvador: um casal de profissionais responsáveis pela metrificação e contabilização do espaço publicitário do jornal, um criador de anúncios cabeludo recém-chegado do Rio de Janeiro com muita bagagem pela imprensa carioca – inclusive alternativa – e, comandando tudo, a gerente Dona Carmen, de afetiva memória.
Todos tinham a pele clara. Minha função era auxiliá-los no que pedissem, seja na busca de materiais para o serviço deles, seja mesmo ir pagar suas contas em agências bancárias próximas. À noite e nas horas vagas eu continuava estudando para prestar o vestibular universitário.
Dona Carmen era acessível e generosa, permitindo que estudasse mesmo ali no ambiente. Disse que tinha um filho de minha mesma idade para o qual pagava um custoso cursinho preparatório para o vestibular. Admirava preparar-me por conta própria.
O Jornal da Bahia era influente, mantinha inclusive convênio de parceria com um dos cursinhos pré-vestibulares da elite local.
Disputadíssimas as vagas para ingresso na Universidade Federal da Bahia – à época. O rigor das provas afastava os pobres e pretos daí. Não havia políticas de inclusão, facilidades como cotas. Essas, reservadas exclusivamente para filhos de fazendeiros agro-pecuaristas e de militares. Toda a sociedade aguardava com ansiedade a lista dos aprovados.
Os jornais de Salvador imprimiam edições extraordinárias logo depois que a Universidade divulgava a lista.
A excitação nas ruas, com parentes e candidatos correndo às bancas para comprar a edição, como em busca de um bilhete premiado, transformava aqueles inícios de tarde. Buzinaços, carreatas, gente dirigindo-se às igrejas para pagar promessas.
Quando cheguei ao trabalho no início daquela tarde já tinha conferido meu nome no jornal. Passara para Jornalismo e, em segunda opção, Economia. Dona Carmen não estava esfuziante: o filho dela não fora aprovado.
Como o Jornal da Bahia, conveniado com um dos cursinhos de elite, promovia uma festa com bandas de música, comes e bebes para os vitoriosos alunos do cursinho, apesar de não ter cursado o tal cursinho, ela deu-me uma credencial do jornal que permitia acesso à festa no final daquela mesma tarde.
A edição do dia seguinte registrava a alegria dos jovens – numa jogada de marketing dos parceiros empresariais e patrocinadores.
A festa dava-se numa das filiais do cursinho, em ambiente adredemente produzido, no bairro do Garcia, imediações do Colégio Antônio Vieira. Terminado o expediente e munido da credencial cedida por Dona Carmen, dirigi-me a festa sozinho.
Ao chegar notei no pátio o carro de reportagem do Jornal da Bahia. Havia muita gente feliz, meninas e meninos brancos, música alta, colorido, risos, comidas e bebidas para todos. Aos poucos ambientei-me.
Exatamente quando estava entrando no clima da festa, já dançando no meio do pulo da multidão, de repente sinto um puxão pelas costas na minha camisa.
A firme mão de um homem negro me continha, arrastando-me para fora, chamando atenção de quem estava próximo.
Nunca suas palavras saíram da minha mente. Mesmo neste Novembro, quando estou aqui na Columbia University na cidade de Nova York como Visiting Researcher Scholar:
– Ei, rapazinho: isso aqui não é lugar para você. Isso aqui é para quem entrou na universidade, passou no vestibular! Saia!
Eu tentava balbuciar que havia passado mas meu algoz negro sarcasticamente mostrava-se incrédulo e me empurrava para fora. Eu era igual a ele na cor da pele, portanto olhando ao redor não era verdade o que eu dizia.
Nem mesmo quando o fotógrafo do Jornal da Bahia, que ante o tumulto reconheceu-me e veio a meu socorro, dizendo para o sujeito que eu era credenciado pelo jornal, o vigilante deu-se por convencido.
Por fim cedeu. Mas então a festa havia acabado para mim.
Como o Calabar, minha comunidade favelada entregue então ao total descaso das autoridades governamentais, não dista muito dali, eu saí andando pelas ruas rumo à casa de minha família.
No caminho chorava. O tempo todo martelando o que acabara de ouvir de meu semelhante: “Saia! Isso aqui não é lugar para você!”
Minha mãe analfabeta abraçou-me orgulhosa ao saber da minha aprovação: o primeiro favelado do Calabar a ingressar numa universidade. Horas depois fui consolado, ainda triste, nos braços de minha namorada Lucinha.
Fernando Conceição, obrigada por abrir por um momento essa fresta de janela para sua história de vida! Como é importante saber que sua mãe estava em casa: para ficar feliz com seu êxito no vestibular. Saber que Lucinha estava lá pra te dar “colo” e amenizar sua dor. O pobre do “Vigilante” era como esse personagem de Tarantino :,o Stephens de Jango Livre, essa obra prima de Tarantino: um vassalo Afrobrasileiro que não dá conta nem de imaginar pessoas de sua cor, na posição de “filhos de sinhozinhos”. Que a leitura desse filme inspire.
Depoimento pungente que ajuda a fortalecer nossa identidade, expõe a ferida que todos nós compartilhamos e tentamos cicatrizar… O “ato fundador” da minha consciência de ser preto aconteceu em uma tarde ensolarada de verão, na calçada de um bairro tranquilo e arborizado da cidade de São Paulo. Eu carregava um sorvete de casquinha que o sol quente se apressava em derreter e que realmente não me apetecia mais… Interveio então minha querida avó que, vendo minhas mãozinhas lambuzadas, aconselhou com a voz mais doce do mundo: “Tome todo o sorvete, bobo, para você engordar, ficar com o rostinho mais cheio, mais clarinho…” Eu devia ter de 4 para 5 anos, é a minha lembrança mais antiga de começar a entender a importância da cor da pele.
Boa semana, quiçá nos braços da amada. Até, caro professor e amigo.
Caro Fernando, estas dentre outras coisas lhe fizeram avançar. Nada melhor do que a casa de nossa mãe nestes momentos. Casa de mãe tem mais ternura! É triste o ocorrido. Tristes memórias! Tristes lembranças!!!
Há quem creia que dinheiro e sofisticação são o bastante para escamotear a cor da pele. Ledo engano!
Cedo ou tarde, alguém surge para lhe lembrar de quem você é e de qual é supostamente seu lugar.
Isso porque, em casos como esse, a salvação nunca é individual.