
Sobre o “marco cultural” que por quatro décadas o Hotel Maksoud Plaza representou para a cidade de São Paulo e para o Brasil, deve-se registrar mais uma informação de importância para a história.
Do hotel, que acaba de fechar as portas depois de 42 anos. E dos movimentos sociais negros no país, até então de retórica meramente vitimista, envergonhadamente desabonadora.
Como se essa ampla parcela da população fosse devedora e não credora do Estado.
Foi nas dependências do Maksoud que a 19 de novembro de 1993 ocorreu o ato político a partir do qual tornou-se qualificado o debate sobre a implantação de políticas compensatórias de ação afirmativa no país. Entre as quais, as cotas nas universidades brasileiras.
Na edição de 20 de novembro daquele ano, Dia Nacional da Consciência Negra, os jornais impressos paulistas estamparam na capa, com direito a foto, assim como em páginas internas, a notícia do lançamento público do MPR – Movimento Pelas Reparações dos Afrodescendentes. Repercutido nacionalmente desde ali.
Seguiram-se imediatas reações contrárias à ideia. De expoentes brancos com acesso à opinião pública mas também de importantes e tradicionais setores do movimento negro institucionalizados Brasil a fora. Particularmente paulistas, cariocas e soteropolitanos.
O ato, organizado a partir de articulação feita pelo então Núcleo de Consciência Negra na Universidade de São Paulo (NCN), aconteceu durante almoço de mais de duas horas em um dos restaurantes situados nas dependências do Maksoud Plaza.
Era preciso dizer à sociedade serem os afro-brasileiros credores da mesma, pelos séculos de escravismo colonial que deu base à sua estrutura. Social, cultural e – principalmente – estrutura econômica, à sua riqueza.
Como vocalizar, visibilizar e repercutir o tal novo discurso? Este de ser o Brasil, até hoje, devedor dos descendentes dos mais de 30 milhões de seres humanos escravizados da colônia aos estertores do Império? E que a lei da abolição do trabalho escravo a 13 de maio de 1888 foi propositadamente omissa em relação aos descendentes do secular trabalho servil?
O MPR, com subsídios científicos e inclusive econométricos – esses, com apoio de titular da FIPE/USP que funcionava ao lado da sede do NCN -, fez as contas e concluiu o preço da dívida do Estado brasileiro em relação a seus negros: mais de US$ 6 trilhões e 400 bilhões!
De posse dos números era preciso agir. Chamar jornais, revistas, rádio e TV para uma coletiva de imprensa para fazer tal anúncio era perda de tempo. Uma série de dados de pesquisas às quais nos dedicamos sobre relação entre mídia, etnicidades e racismo, demonstrava o viés negativamente estereotipante da cobertura e da presença/ausência negra nos meios de comunicação.
O que caracteriza a cobertura, antes mais que neste 2021, é aquilo que em capítulo de livro organizado por Kabengele Munanga (1996, Estratégias e Políticas de Combate à Discriminação Racial) denominei de teoria dos três “Ls”: quando aparece na mídia, o negro comumente é assim retratado: Lúdico, Lúgubre ou Luxurioso.
A-politico.
Contudo o MPR quis publicizar a bandeira político-econômica das reparações no Brasil. E o local escolhido tinha de ser icônico, como era o 5 estrelas Maksoud. À época negros brasileiros intimidavam-se apenas de pronunciar o nome do hotel, imagine agir nele.
Era urgente, como sói, o Estado indenizar em dinheiro todos os afrodescendentes, dividindo aquela soma total.
Cada um de nós tinha (e tem) direito a crédito particular de US$ 120.000,00 àquele ano. O palco utilizado para dizer isso somente poderia ser o Hotel Maksoud Plaza nas imediações da Avenida Paulista.
Antes de ser protocolada na Justiça Federal em São Paulo uma Ação Declaratória, pela qual a União foi judicialmente instada a manifestar-se sobre o pedido de indenização aos afrodescendentes, foi marcado o ato político no Maksoud Plaza. Subsidiado pelo então diretor da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, o saudoso professor Antônio Junqueira.
Escolhido com antecedência o restaurante para o repasto dos que ousaram para ali dirigir-se no início da tarde de 19 de novembro, avisamos minutos antes às redações de grandes jornais, rádios, revistas e TVs que os ativistas do MPR não pagariam a conta do almoço. Por tratar-se de um gesto por reparação.
No final do regabofe, bebidas incluídas, solicitado o garçom trouxe a conta: passava de US$ 1 mil. Todos os 12 comensais, a maioria mas não a totalidade estudante da USP, já vestidos com a camiseta estampada a bandeira do movimento.

Coube-me receber, conferir, devolver e dizer ao garçom que o valor da conta era sua gorjeta. Câmeras de televisão e fotógrafos de jornais registravam. Chamou-se o gerente do restaurante. Depois o do Maksoud, acompanhado por seu staff e a assessoria de imprensa para responder à cobertura jornalística presente.
No saguão, hóspedes como Natalie Cole – nas paradas internacionais com o remix de “Unforgettable”, sucesso do pai Nat King Cole – testemunhava o pequeno tumulto. À intérprete e outros hóspedes foram entregues cópias do Manifesto pelas Reparações.
A Polícia Militar foi requisitada mas não atendeu ao apelo de contenção dos manifestantes, que deixaram o hotel. Na mesma noite e no dia seguinte o MPR estava publicamente lançado nos jornais, com a imagem do Maksoud Plaza por cenário.
Nas palavras do gerente do restaurante estampadas nos jornais, pela elegância daqueles clientes e pelo requinte dos pedidos dos pratos e bebidas caros, a equipe de chefs e garçons pensou tratar-se de “diplomatas e representantes de países da África”.
A repercussão do ato espalhou-se como um rastilho de pólvora através das mídias, gerando controvérsias. Lideranças negras tradicionais – ainda hoje pontificando no país – reagiram com escárnio, em desacordo com a ideia.
Outras estimularam o debate. Em ao menos 5 Estados foi possível encetar uma campanha para colher assinaturas visando propor um projeto popular na Câmara dos Deputados pelas Reparações.
No 20 de novembro de 1995, em sessão solene a Zumbi dos Palmares, foram entregues nas mãos do então deputado federal Paulo Paim (PT-RJ) um conjunto de caixas com formulários assinados por mais de 10.000 cidadãos brasileiros, detalhando a ideia. Foi o fundamento da Lei 12.288, Estatuto da Igualdade Racial, aprovado pelo Congresso Nacional e sancionada em 2010.
Maksoud Plaza registrou queixa de “calote” no distrito policial, pelo não pagamento do almoço. Meses depois as intimações começaram a chegar na sede do NCN, identificados pela reportagem que foram alguns dos comensais. O francês Paul Regnier, pós-graduando na USP (hoje professor no Instituto de Matemática da UFBA), foi um dos que tiveram de ir à delegacia depor.
Jorge Calmon, diretor de Redação de A Tarde, queixou-se ter chegado à sede do jornal uma carta cobrando o pagamento em nome desse escrevinhador – repórter freelance da casa.
No 13 de maio seguinte os ativistas do MPR retornaram ao mesmo restaurante do hotel para outro almoço. Deixando patenteado ter condições de pagar a conta. Se antes não, isso não foi por “calote” mas por posicionamento político. Também aí houve registro da imprensa.
Cerca de um ano depois, sob o patrocínio da competentíssima advogada Maria da Penha, coordenadora então na secretaria de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados-SP, foi feito um acordo. O Maksoud Plaza desistia de processo, mediante o pagamento do valor do almoço.
Com o tempo e paulatinamente a ideia das Reparações foi incorporada pelo discurso dos movimentos sociais negros em geral. De forma distorcida, sublinhe-se. Até por governos, como políticas públicas assistenciais, departamentos e secretarias.
Da reparação financeira, a qual representantes do movimento repudiaram desde sempre sob alegação de o “vil metal” não pagar “os horrores da escravidão”, não se fala mais nisso.
Por suposto resta no vermelho o saldo bancário da massa negra, embora possivelmente não o de alguns que continuam a falar em seu nome. Os donos do Estado, suas agências e agenciadores agradecem.
Apesar de não concordar com a afirmação de que o que havia antes era “vitimismo”, concordo que as ações realizadas no M.Plaza foram um marco na luta contra o racismo no BR, principalmente no que tange as Ações Afirmativas.Obrigada por nos trazer essa história que muitos como eu não conheciam.
Uma ideia na cabeça e um mínimo de iniciativa e organização: um episódio que fez história e mudou o panorama da luta do negro no Brasil… Parabéns!