Dia desses o renomado jurista Ives Gandra da Silva Martins, em crítica a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que definiu “injúria racial” no Brasil como “delito imprescritível”, dizia-se estupefato, no limiar de sua longa carreira como estudioso e operador do Direito, com os descaminhos anticonstitucionais trilhados em recentes anos por essa corte suprema.
Como essa “inovação” quanto ao racismo, sem amparo em nenhum instrumento legal – a não ser na novíssima jurisprudência imposta pela corte suprema.
É a Constituição da República de 1988 que afirma a liberdade, inclusive de opinião e expressão, a isonomia de direitos/deveres sem quaisquer distinções entre os brasileiros, a democracia como pilares da sociedade que emergiu à ditadura militar de 1964.

O STF brasileiro – a exemplo de cortes supremas mundo afora, como a dos Estados Unidos, tem extrapolado sua competência constitucional ao invadir a esfera dos demais poderes da República – o Legislativo (Câmara dos Deputados e Senado) e o Executivo, este presentemente comandado por Jair Bolsonaro.
Em Corpo e Alma da Magistratura Brasileira, livro fruto de pesquisa organizada por Luiz Vianna, tem-se uma leve ideia dos argumentos de como se deu e vem se dando o protagonismo do judiciário, que o leva à tentação e à prática da usurpação dos demais poderes, omissos ou inertes na tomada de decisões importantes para o país.
Até hoje persiste o mal-estar quanto à controversa decisão da Suprema Corte Americana que, contrariando a vontade do eleitor, declarou o candidato do Partido Republicano George W. Bush presidente dos Estados Unidos em 2000, passando por cima de evidências que apontavam a vitória de Al Gore, do Partido Democrata, que pediu recontagem de votos na Flórida, Estado então governado por Jeb Bush.
A Suprema Corte mandou interromper a recontagem e empossar na Presidência o irmão do governador: fim de papo.
Gore Vidal, escritor dos mais importantes e influentes em círculo restrito de intelectuais anglo-saxões de alto nível, passou anos alertando seus conterrâneos: a Suprema Corte seria a principal ameaça ao cidadão contemporâneo. Em razão de seu apetite ilimitado que distorce o sistema de pesos e contrapesos entre os poderes previsto pelos chamados “pais fundadores” do federalismo estadunidense há cerca de 220 anos.
Se não houver reação da chamada sociedade civil organizada, alertava Vidal em vários de seus ensaios publicados entre os anos 1980-90, os nove juízes da Corte Suprema teriam, como têm os 11 daqui, absoluta liberdade de comporem-se como uma corporação autocrática sem freios.
A qual julga-se a si mesma intocável, vez seus membros terem cargo vitalício (nos Estados Unidos) ou quase isso (no Brasil). Corrompendo a “alma” da federação e o espírito das leis como propugnado por Montesquieu.
Também no Brasil o STF tem decidido como um Poder Absoluto, de forma ilegal. À revelia do prescrito pelas leis do país.
Não apenas em casos de conflito de interesses entre aqueles outros dois poderes, que ali cada mais recorrem, composto por representantes eleitos em voto por todos os brasileiros aptos a votar.
Como também e frequentemente em assuntos de direito penal/criminal, principalmente envolvendo gente rica e poderosa com dinheiro para contratar advogados de peso.
Chega-se ao desplante de um de seus ex-presidentes, Dias Toffoli, declarar aos quatro ventos, em conclave promovido em Lisboa por empresa – isso mesmo, empresa! – que tem por sócio um de seus pares, Gilmar Mendes, ser o STF hoje o “Poder Moderador” do país. Como se os constituintes de 1988 tivessem inscrito na Constituição ser o Supremo um poder Acima dos demais.
Ou seja, a se crer na palavra de Toffoli o Supremo brasileiro deu um golpe, tem paulatinamente golpeado os cidadãos brasileiros sem sofrer qualquer consequência por isso. Os brasileiros jamais em tempo algum concederam ao STF o Poder Moderador, como foi dado ao Imperador D. Pedro 2º durante a Monarquia.
É competência exclusiva do Legislador (senadores, deputados e vereadores) fazer leis e dizer como essas devem ser aplicadas, aprovando-as por maioria como prescreve o sistema democrático. Ao STF caberia tão-somente julgar, sem preferências eletivas, os conflitos que ali chegassem.
Se quisesse um Supremo Protagonista e Ativista Acima de Tudo e de Todos, o constituinte assim o definiria. Em 1988 ou agora. Mas não o fez, ao menos por enquanto.
Contudo no Brasil os 11 ministros do STF, seja em decisão colegiada seja em decisões monocráticas individuais, mais e mais aplicam, interpretam e reescrevem a Lei a seu bel-prazer, sem terem o mandato do eleitor para assim agirem.
A seguir dão entrevistas, twitam, fazem “lives”, postam em redes sociais, participam de festejos, jantares, adiantam seu voto fora dos autos dos processos.
É um escárnio, para o qual não se ouve uma voz contrária do mano Caetano, de Roberto Carlos e das baleias.
Por tratar-se de última instância decisória do poder judiciário, não há nenhuma outra jurídica a se recorrer de suas deliberações – mesmo as mais flagrantemente arbitrárias e de per si criminosas.
A cambalhota interpretativa que a partir de março deste 2021 reabilitou politicamente o comandante de um dos mais sofisticados esquemas de corrupção já desmontados no país – consequentemente abrindo a porteira para todos os demais corruptos e corruptores transmutados em heróis e ao mesmo tempo vítimas da Força Tarefa da Operação Lava-Jato, é ilustrativa da leniência do STF com o cinismo de mal feitos de colarinho branco.
Invertem-se os valores: os ladrões da bolsa pública são democratas, defensores das liberdades e do bem querer.
Parciais, suspeitos e párias os que os investigaram: trouxeram provas aos autos; os julgaram; os condenaram a penas, confirmadas em instâncias judiciárias outras, não somente de privação de liberdade mas também de devolução de milhões e milhões de dólares desviados dos brasileiros comuns para contas secretas em países como Suíça e paraísos fiscais.
Caberia ao Legislador, à Câmara dos Deputados e ao Senado, dar um basta nisso, restabelecer limites ao STF.
Como parte considerável desses representantes do povo tem a guilhotina dependurada no pescoço em ações de improbidades, abuso de poder, compra de votos, corrupção, crime organizado e outras de outros quilates sob análise por ministros daquela corte, parece aqui da planície vigir um acordo tácito no planalto que faz um refém do outro na Praça dos Três Poderes em Brasília. E o povo refém de ambos.
As mais impactantes decisões do STF nos últimos tempos são de cunho mais político que técnico, como se deu na seção do impeachment de Dilma Rousseff em 2016, presidida por Ricardo Lewandowsky.
Não precisa ser pitonisa para prever: seu antibolsonarismo militante terá impacto nas próximas eleições presidenciais brasileiras de 2022. Para o bem ou para o mal.
Soma-se com a conivência entusiasta de amplos setores dos conglomerados midiáticos estabelecidos e de certa elite formadora de opinião, além da torcida de quanto pior o Brasil estiver, melhor para os nossos interesses de manutenção do status quo.

Essa interpretação enviesada quanto ao perigo à estabilidade da ordem institucional representado pelo atual STF, como salientou Ives Gandra Martins, é que leva à naturalização e ao aceite complacente da perseguição inquisitorial a seus críticos “normatizada” pelo chamado Inquérito das Fake News (ou Do Fim do Mundo, nas palavras de seu ex-ministro Marco Aurélio de Mello).
Inquérito por si só ilegal em seus fundamentos, antijurídico em sua norma, anticonstitucional em sua natureza.
Pelo qual o STF entronizou cada um dos seus 11 membros com o famoso dito dos sombrios tempos de exceção da ditadura, avessa ao dissenso e à contrariedade: “Sabe com quem está falando?”. Para a seguir ordenar prender, arrebentar, censurar, calar, execrar com aplauso de imbecis.
Ante o arbítrio referendado pela maioria da Câmara dos Deputados e do Senado, à sociedade resta uma única esperança. Saber que todos são mortais, incluindo cada uma e cada um dos ministros do STF, cuja composição muda ao passar do tempo.
Isso se a sociedade tiver paciência e o Estado Democrático de Direito sobreviver a tais arbítrios.
Se a CF de 1988 afirma a isonomia de direitos e deveres de todos os brasileiros, e, mesmo assim, os principais indicadores sociodemográficos do país revelam que isso não vem sendo obedecido pelo Estado, então, cabe sim ao Poder Judiciário exigir a observância aos requisitos de legalidade definidos no texto constitucional. Afinal, a indiferença à condição de ser uma das nações mais desiguais do mundo também é um flagrante desrespeito ao princípio da isonomia. A Carta Magna não dá permissão para que o Estado brasileiro promova tratamento desigual por motivo de raça e cor.
A quem interessa a sanha persecutória contra os veículos de comunicação? Quando os ditos liberais, ou progressistas, ocupavam o poder, a imprensa era taxada de golpista; agora, são os conservadores e fascistas que tentam demonizá-la. Parece que o exercício fiscalizatório do poder desagrada o interesse dos mais variados espectros políticos. Por que será? Quem deseja apenas elogios e ser exaltado, que contrate serviço particular de assessoria de comunicação. IMPRENSA É OPOSIÇÃO. O RESTO É ARMAZÉM DE SECOS E MOLHADOS!
Não se viu tamanha revolta contra o STF quando os ministros deliberaram pela interpretação criativa da Lei para autorizar a prisão em segunda instância, mesmo sendo a CF de 1988 explícita ao se referir ao “trânsito em julgado”. Qualquer leigo consegue compreender a referida norma constitucional. Os ministros não se impuseram como magistrados e cometeram um ato falho, que inevitavelmente teria de ser corrigido.
É notório que a prisão em segundo grau de jurisdição é justa, porque reduz as prerrogativas dos mandarins e endinheirados, porém, não é legal perante a Constituição do país. Assim é a Lei e quis o constituinte. E a prática de interpretações da Lei subjetivas e seletivas se chama casuísmo, bom somente quando é do “nosso” agrado.
Interpretações maniqueístas da conjuntura política do país são invariavelmente falhas e incautas. O poder sempre é o objetivo final, e o populismo é o meio para conquistá-lo. É o que nos ensina a história do Brasil. Isso se aplica até mesmo àqueles que dizem combater o culto à personalidade, mas que buscam se apresentar publicamente como um super-herói “abnegado” pelo seu país, recém-saído de uma história em quadrinhos.
O problema é que o Brasil não é uma graphic novel!