A escritora nascida na Nigéria e de sucesso internacional

Se não viu, assista a entrevista da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura, concedida virtualmente da casa dela em Lagos, Nigéria. Embora gravada antes, foi ao ar na noite deste 14 de junho.

A nacionalidade nigeriana dela vale para consumo externo. Já que Nigéria, ex-colônia britânica, submetida aos padrões de colonização, somente à força e ao custo de muito sangue derramado até hoje por guerras “tribais” e separatistas, é constituída por sobreposições etnicolinguísticas sob equilíbrio precário.

Ela como membro da elite da etnia igbo, teve o privilégio da formação acadêmica robusta por longo período nos Estados Unidos da América.

Sabe-se que o código penal da Nigéria considera crime a simples noção de diversidade sexual. Homossexualidade masculina ou feminina, em consonância com a sharia, o conjunto de leis Islâmicas, é punida com chibatadas, prisão, pena de morte por apedrejamento.

A dedução lógica é que o sucesso da hétero Chimamanda decorre do reconhecimento e respeito obtidos principalmente fora de seu país.

Há poucos anos, depois de ler o seu Para educar crianças feministas, descobri a veia de uma mulher inteligente, humanista e generosa.

Para surpresa minha. Antes de ler rejeitei o enunciado do título, enganoso. Discuti em casa: antes de feministas, temos de educar as crianças é para ter princípios. Éticos e morais.

No “Roda Viva” Chimamanda coloca no bolso, de forma delicada e doce, a bancada de entrevistadoras. A presença dessas foi completamente inócua. Não fosse o brilho da escritora, em vez de viva seria uma “Roda Morna”.

A produção já pecou por isso: por que somente mulheres na bancada? E mulheres do mesmo viés discursivo, monocórdio e enfadonho: a culpa das mazelas do mundo é do macho.

Lembro Milton Santos, o geógrafo de quem tornei-me biógrafo, dizendo-me da produção do “Roda Viva” convidando-o para entrevistar um diplomata negro do alto escalão estadunidense de passagem pelo Brasil, sobre a pauta do racismo.

Milton Santos rejeitou participar depois de informado que o resto da bancada era formada somente por entrevistadores negros como ele. “Não aceito esse determinismo imposto, como se a questão do racismo fosse assunto só para negros”.

Não haveria no planeta nenhum homem hétero normativo, como se diz agora, de inteligência e sensibilidade equivalentes à da entrevistada para confrontar o feijão com arroz servido na roda?

A propaganda que antecipou a veiculação do “Roda Viva” de Chimamanda, assim como sua abertura, pintara a entrevistada como uma espécie de “porta voz do feminismo” mundial.

De que feminismo está a se falar? – replicou a escritora. Lembrando ter parido e ser mãe de uma menina. De ter criado dois sobrinhos menores, de que mulheres comuns em suas labutas cotidianas são as feministas que mais lhe interessam. As feministas de botequim devem ter se contorcido no sofá ao ouvi-la.

Ela tem marido, lembrou. Certamente para desgosto de porta-bandeiras e de entrevistadoras de argumentos de gênero de qualidade suspeitosa.

Sim, senhorinhas: Chimamanda tem marido! Dito como disse, soa herético. Marido com o qual dera uma volta mais cedo pela cidade nominada pelos exploradores portugueses tal qual Lagos no Algarve.

Silêncio da bancada de entrevistadoras quanto a isso. Silêncio demonstrativo da falta que lhes faz – dirão que “por escolha própria, meu corpo minhas regras” – a complexa experiência de ter um para chamar de seu.

Uma feminista trazer o marido para a roda sempre que podia em suas respostas? Para mencionar trivialidades e divisão de tarefas domésticas, como cozinhar?

No livro acima citado a autora também escreve sobre o marido, ressaltando ser da etnia “historicamente” rival: iorubá.

Pelo que aprendi de Arnaldo e Elisa Lima, casal de baianos que anos a fio na década de ´80 trabalhou num dos campi da Universidade Obafemi Awolowo, de Ifé, o casamento de Chimamanda é algo incomum. Na relação conflituosa entre os igbos e iorubás, dois dos maiores grupos étnicos do país marcado pelo comércio da escravidão entre eles.

Outra vez Chimamanda surpreende. Demonstra ser a prática distinta da teorização. Uma coisa é falar sobre. A outra é viver a coisa em si, inclusive a da afeição.

Desde que mantidas as simetrias de classe e de distinções de status, critérios que devem nortear a escolha do casal em tocar a vida, apesar de tudo. Em verdade ela e o marido, talvez antes de sê-lo, devem frequentar há tempos os mesmos clubes, praias e restaurantes exclusivos da elite local.

Ela tem a conta bancária recheada, é rica. É bonita. Sorri. Dispõe da amizade da ex-primeira dama Michele Obama. Tem amigos homens heterossexuais. Agenda cheia, mesmo no alto padrão do mercado da moda.

Sua assessoria – com a qual há quatro anos, pelo grupo de pesquisa que coordeno na UFBA, contatamos sondando a possibilidade de tê-la num congresso acadêmico internacional aqui na Bahia – cobrou no mínimo R$ 80.000,00 de cachê por uma hora de fala.

Esta que é uma das vozes mais potentes da literatura contemporânea em língua inglesa, a partir de seu estrondoso sucesso referendado pela mainstream media estadunidense – inclusos The New York Times e TEDx Conferences, parece rejeitar a estreiteza de ideias idealizadas por quem, do alto de uma certa teoria de gêneros, não vive no mundo real da esmagadora maioria das mulheres comuns mundo afora desde sempre.

Quando a entrevistadora Carla Akotirene – a quem mando um salve e um abraço! – lhe indaga sobre a religião dos orixás (um erro crasso, já que a fonte havia informado ser igbo), singelamente a entrevistada discorre sobre sua formação religiosa familiar. Sua fé cristã. Frequenta missa católica, mesmo quando residiu nos Estados Unidos.

Imagem do “Roda Viva” de 14/06/2021 (assista)

Foi a mesma Carla Akotirene, malgrado referir-se intimidada à escritora por “professora”, que perto do fim da roda mencionou en passant o “terrorismo” (termo inadequado) dos radicais islâmicos do grupo jihadista Boko Haram.

Bem, aqui o assunto deixaria de ser moda, feminismo, opressão do machismo patriarcal (um dia vou problematizar esse lugar comum), luto pelas mortes recentes do pai e da mãe, enfim, esses temas da área sentimental ou do campo da cultura presentes no decorrer do programa.

Vez Chimamanda Adichie afirmar ser engajada em questões políticas, estaria disposta a analisar em profundidade a questão posta? Ficou claro que não. Seria expor-se demais ao perigo, se ela ainda quer circular pelas ruas, ainda que blindada por seguranças privados.

Nessa parte do programa ela enrola, enrola e contorna a pergunta. Não é suicida.

Fica patente sua perspicácia: temas espinhosos da política doméstica interna – cancro da corrupção das elites políticas e econômicas de Lagos e Abuja – são tangenciais em sua abordagem.

É confortável opinar sobre assuntos políticos do Brasil e dos Estados Unidos, condenando-nos e propondo soluções, como Chimamanda tem feito.

Trava-se na Nigéria, e não de agora, um combate fratricida de posições de poder, a partir do levante jihadista alinhado a facções do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS) e da Al Qaeda.

Jihadistas nigerianos – não apenas Boko Haram – com suas táticas sangrentas que incluem sequestros frequentes de milhares de estudantes, meninas e adolescentes, disputam grandes porções territoriais no nordeste distante onde, duvido, gente da boa estirpe de Chimamanda se exporia. O próprio Exército nacional, também corrompido como apontou Fela Kuti em “Zombie“, teme expor-se!

Seria exigir muito dela fixar-se nesse assunto num bate papo entre quase comadres.

Chimamanda Adichie merece vida longa, a tempo de ganhar um Nobel de Literatura.

Quando ressalta gostar do capitalismo e suas benesses, conquanto possa vir a ser distributivo, desmascara o feminismo de cátedra das feministas “do grelo duro“, como Luiz Inácio Lula da Silva um dia bem conceituou.