Ufa! É a exclamação que sobrevêm ao acender das luzes, depois de duas horas da encenação de A Tempestade, de William Shakespeare, no Teatro Vila Velha.

Você toma banho, coloca seiva de alfazema no corpo, veste-se e desloca-se à região central de Salvador, Bahia. Paga $40,00 pelo ingresso e, antes do espetáculo se desenrolar, fica com um pé atrás.

Que será que Marcio Meirelles, ex-secretário de Cultura de Jaques Wagner (PT), diretor do Vila e da montagem, aprontou com Shakespeare dessa vez?

Ariel (Chica Carelli, ao fundo) espírito desdobrado no palco por dezenas de atrizes-dançarinas

Quais liberdades e liberalidades tomou para, como em experiências anteriores, “desconstruir” (toc, toc, toc!) o clássico, tudo em nome da demagogia populista com que, aqui e ali, deixa enlevar seu ego?

Com essa A Tempestade, em cartaz de sexta a domingo, até o final de abril deste 2020, Marcio Meirelles redime-se de caricaturas de montagens shakespearianas anteriores.

Afora essa ou aquela falha técnica, como a sobreposição do volume de sons de tambores sobre a fala de personagens – ainda que os atores também estejam plugados a microfones sem fio -, a encenação está correta.

Exatamente por não cair no clima politicamente correto mas obedecer ao espírito do texto do autor do século 16-17, traduzido por Barbara Heliodoro.

Não se deve querer reinventar a roda com Shakespeare. Está tudo ali em sua escrita, inclusive dificultando o trabalho de criação do encenador.

Tarefa que, com A Tempestade, Meirelles desincumbiu-se satisfatoriamente.

Embora mantenha dois cacoetes inerentes a algumas de suas montagens: a composição da cena com exibição de vídeos em telão acima e por detrás do palco; e a rumpiletização demasiada da sonoplastia.

A primeira opção é completamente dispensável, não fosse o diretor colonizado pela geração do videoclipe. A segunda é o vício que se paga pela montagem se dar numa terra barulhenta como Salvador.

O artifício do batuque é ferramenta necessária para prender a atenção de uma gente que, de outra forma, pela ausência de educação pelo silêncio, bocejaria ainda na metade do primeiro ato da peça.

Meirelles compreende isso, pressionando os atores em cena a competir com tambores estridentes e videoclipes desconexos – o que obriga-os, aos atores, esforçar-se pela atenção do público.

Desses, os que melhor desincumbem-se do ofício são os dos protagonistas Próspero, Caliban e Ariel. Os três suplantam-se em performance dramática, ofuscando tudo o que de mais está posto em cena.

Optar por dar o papel de Miranda, a imaculada filha de Próspero, a um ator homem, travestindo a personagem, é solução arriscada e não resolvida. Soa artificial, caricatural.

A despeito da boa intenção provocativa do diretor, nesse caso a interpretação da personagem perde em substância.

Não há texto de Shakespeare em que a magia, espíritos, fantasmas e elementos do mundo sobrenatural interajam mais dramaticamente com o humano que este.

Meirelles está de parabéns por ter multifacetado Ariel, o espírito do tempo, multiplicando a personagem por duas dezenas de outros atores-dançarinas no palco. O resultado é excelente.

Figurino, uma escolha feliz. Iluminação, a contento.

Meirelles, no entanto, traindo a confiança do espectador, inventa um final enganoso para quem desconhece o tema central de A Tempestade: uma ode ao perdão, ainda que você tenha sido vítima dos maiores golpes e traições.

Caliban, o nativo híbrido de gente, peixe e homem da ilha usurpada pelo náufrago – por todo o tempo tratado como monstro e escravo – cortaria o pescoço do usurpador europeu que o escravizou.

Diretor Marcio Meirelles: ufa!!!

Metáfora do conflito entre colonizador branco e colonizado negro-indígena, assim também pode ser lida a peça shakespeariana em suas complexas sutilezas. No finalíssimo do final o diretor propositadamente esquece-se disso.

A montagem da companhia Teatro dos Novos, com cerca de 30 integrantes em cena, é cara e elogiosa. É investimento correto do edital Gregórios da Prefeitura Municipal de Salvador.

Mereceu cada centavo investido. É penoso admitir, pelo custo do empreendimento, que não possa alçar voos mais altos, em temporadas Brasil afora.