
A chamada Praça XPTO, entre a Av. Sabino Silva e Ondina, subtraída à força da zona homogênea do Calabar (via de acesso à direita) em transação com ex-prefeito de Salvador e empreiteiras, que alí construiram um condomínio murado de prédios
NAS RECENTES cinco semanas este escrevinhador questionou representantes autorizados da Prefeitura de Salvador, da Santa Casa de Misericórdia da Bahia (SCMB) e da Câmara Municipal sobre a legalidade da transação anunciada a 23 de dezembro de 2014 pelo prefeito ACM Neto e o provedor da Santa Casa, Roberto Sá Menezes.
“A partir de seus alertas, nossa atenção sobre o possivel acordo aumentou”, admitiu o procurador Thiago Dantas, que comanda o gabinete da Procuradoria Geral do Município (PGMS) na Secretaria da Fazenda Municipal (Sefaz).
O negócio está sendo analisado nos âmbitos da PGMS e da Sefaz. Ganhou um identificador – Processo nº 114.364/2014 -, a partir de ofício dirigido ao titular da Sefaz, secretário Mauro Ricardo Costa, pelo secretário de Infraestrutura, Paulo Sérgio Fontana, datado de 9 de outubro de 2014.
- ESTATUTO DA CIDADE É SUFICIENTE
Estava com 110 páginas a 14 de setembro de 2015. Parecer da procuradora da PGM Silvia Cecília Azevedo, de 31 de julho, recomenda, contundentemente, “desconsiderar a minuta de escritura de doação celebrada entre a Interessada [SCMB] e o Município, porquanto inadequada, neste caso.”
Silvia Azevedo sugere à Prefeitura adotar medidas “para que ocorra a regularização [fundiária do Alto das Pombas e Calabar], priorizando-se, neste caso, os institutos da demarcação urbanística e legitimação de posse, previstos no Estatuto da Cidade.”
Ou seja, excluindo, com respaldo em lei, a Santa Casa de qualquer tratativa. A procuradora solicita o “cadastramento das famílias residentes, reunião da documentação existente e de informações adicionais, juntamente com a comunidade.”
Entretanto, logo depois o coordenador da Coordenadoria de Administração do Patrimônio municipal (CAP/Sefaz), Carlos Mesquita Motta, em ofício à PGMS, pede reexame da matéria, face à “liberalidade” que representaria o instituto da doação ofertada pela Santa Casa.
- LONGO PERCURSO FUNDIÁRIO
O procurador Thiago Dantas recebeu este escrevinhador na tarde de 11 de setembro, ao lado do inspetor fiscal Laurentino Vilan, especialista da CAP/Sefaz. Foi informado de que no primeiro processo judicial, iniciado no fim do ano de 1980, visando a regularização da posse da terra onde se localiza as comunidades do Calabar e do Alto das Pombas, a Santa Casa jamais constou como parte interessada.
A Prefeitura, que em janeiro daquele ano publicou decreto de desapropriação por utilidade pública da área de mais de 78 mil metros quadrados do Calabar, no qual a SCMB é apontada como proprietária, no dia 11 de novembro publica novo decreto, de nº 6.037, revogando o anterior. Por este, a área a ser desapropriada cresce para 79.354 metros quadrados e a suposta propriedade da Santa Casa não é mencionada.
A Ação de Expropriação originariamente de nº 131, ajuizada em 18/12/1980 na 3ª Vara da Fazenda Pública pela Prefeitura, tinha por expropriante a Renurb (Companhia de Renovação Urbana de Salvador). O expropriado nunca foi a Santa Casa, mas, sim, O Sr. Alcides Barreto Fontes (e outros).
A seguir a ação foi redistribuida para a 6ª Vara, cujo titular era o juiz Rubem Dario Peregrino Cunha. A ação tramitou por uma década e meia. Em sua sentença terminativa, pela qual extingue o processo, datada de 26/09/1994, o juiz escreveu:
“O poder público [Prefeitura], como afirma o Ministério Público em seu parecer (…), decorridos 15 anos, também se omitiu, não promovendo os atos destinados a efetivar a sua pretensão, deixando, dessa forma, que ocorresse a caducidade.”
Ao examinar o conteúdo do processo, verifica-se que a única pessoa que o poder público municipal considerou como passível de desapropriação foi Alcides Barreto Fontes e familiares, defendido na ação pelo advogado Otávio Martins Sá.
- DAVID E GOLIAS?
Na sentença terminativa o juiz acata a tese do Município, representado pela PGMS. Não julga o mérito da ação, “por inexistência de comprovação de legitimidade para pleitear o quanto alega” o Sr. Alcides. Que também não demonstrou cabalmente ser proprietário da área.
Recentemente este escrevinhador tentou localizar o advogado e seu representado, sem êxito. Lá atrás, como a maioria da comunidade, conheceu pessoalmente o Sr. Alcides, um homem negro-mestiço que aparentava poucas posses e recursos. Trajava roupas desgastadas, puídas, peregrinando com uma pasta repleta de folhas soltas de documentos cartoriais, alguns amarelecidos pelo tempo.
Certidões várias. Afirmava-se herdeiro de toda a área que, oficiosamente então, a SCMB informava à população dos dois bairros ser dela.
Tanto que muitos moradores do Alto das Pombas e do Calabar até àquela época eram cobrados por prepostos da Santa Casa e pagavam, sem recibo válido, um valor anual pela ocupação. Também muitos pagavam – como ainda pagam – o IPTU, imposto predial e territorial urbano.
Como a parte passiva do processo de expropriação, Alcides Barreto Fontes recorreu do valor que a Prefeitura ofereceu pela área. O juiz da 3ª Vara, sem adentrar no mérito da ação, em 1982 reajustou os valores. Até mandou o município indenizá-lo.
O então prefeito da cidade, Renan Baleeiro, advogado, encontrou maneiras de descumprir a ordem judicial e a 14 de junho visitou o Calabar para vistoriar as obras urbanísticas ali iniciadas meses antes. Isso virou notícia de jornais, como o carlista Correio da Bahia de 15 de junho.
Em resposta, Alcides ingressou na Justiça, a 15/07/1982, com uma Ação de Atentado contra a Prefeitura (Processo 132/82), anexando aos autos o recorte de jornal.
Alega que a Prefeitura “invadiu a área do Calabar” para realizar as obras, sem ter obedecido a ordem judicial de depositar “o valor correspondente à indenização já julgada e transitada pelo juiz da 3ª Vara”.
- SURGEM OUTROS INTERESSES
Toda essa batalha judicial durou até 1994. No processo examinado junto à 6ª Vara por este escrevinhador há muitas idas e vindas. Aparecem terceiros interessados na disputa, a exemplo da empreiteira Terrabras. Nunca a SCMB.
Em 4/03/1991, por meio da Patrimonial Silveira Castro, a Terrabras oficia o juiz e pede a extinção do processo, afirmando defender seus “interesses” na área de terras em disputa.
De fato, a empreiteira Terrabras obteve para si, na segunda gestão do prefeito Mário Kertèsz (1985-1988) uma área de 5.290 metros quadrados, originariamente pertencente à comunidade do Calabar.
Ali, pelo lado do bairro de Ondina, ergueu um condomínio murado, com torres de 20 andares cada. A área subtraída da comunidade por Kertèsz e Terrabras (a SCMB jamais deu um pio sobre o assunto em público), conforme decreto municipal 6.679, de 3 de novembro de 1981, que instituiu uma Zona Homogênea de urbanização,
“Corresponde à Praça XPTO, que deverá ser arborizada e equipada, com quadra de esporte e parque infantil, se constituindo na principal área de recreação e lazer para a população do Calabar e adjacências”.
A transação entre a SCMB e a Prefeitura foi declarada, tanto por ACM Neto como por Sá Menezes, o presidente da Câmara de Vereadores Paulo Câmara e pelo vice, vereador Geraldo Júnior, como sendo em benefício dos moradores do Alto das Pombas e do Calabar.
- TERRENO DA AV. ORLANDO GOMES
As mais de 6 mil famílias dessas duas antigas comunidades de baixa renda da capital baiana anseiam pela regularização fundiária do local. A SCMB se apresenta hoje como proprietária dos 220.174 metros quadrados onde as comunidades estão instaladas.
Apresentou ao processo na PGMS cópia de certidões de cartório de registro de imóveis, obtidas a partir de sentença de usucapião obtida em junho de 1981 na 6ª Vara Cível e Comercial da Justiça estadual. Estaria “doando” sua propriedade à Prefeitura para que esta possa regularizar, enfim, a situação de quem ali habita há mais de seis décadas.
De aproximadamente 39.720 metros quadrados é a área pública do município, de terreno livre e desimpedido na Av. Orlando Gomes, que a Prefeitura de Salvador estuda conceder à Santa Casa de Misericórdia da Bahia.
No anúncio oficial feito perante o público numa praça do Calabar a 23 de dezembro, a Santa Casa o receberia como uma contrapartida municipal, com o nobre objetivo de erguer uma unidade hospitalar.
Porém, hoje as fontes ouvidas insistem em separar as coisas. Inclusive a negociação que existe quanto ao terreno da Av. Orlando Gomes não envolveria doação automática à SCMB. Seria um contrato de concessão de uso, com prazo determinado e mediante a obediência, por parte da instituição, de uma série de pré-requisitos.
- PRACINHAS E PARADOXOS
Balancinhos, escorregadeiras e bancos com estrutura em madeira ali instalados ainda em meados da gestão do ex-prefeito João Henrique (PDT), faz mais de quatro anos, jamais passaram por manutenção.
A pracinha em frente à principal entrada da comunidade do Calabar, sobre o canal da Av. Centenário, está com os equipamentos de bricadeiras infantis todos deteriorados. Os pais ainda levam as suas crianças à pracinha, por não ter outra opção de lazer dentro da comunidade.
Nada disso, em 23 e dezembro de 2014, quando ali, com o provedor da SCMB Roberto Sá Menezes, esteve para assinar um “termo de doação de parte da Fazenda São Gonçalo” [clique para ler] o prefeito Antonio Carlos Magalhães Neto enxergou. Ainda está em tempo.
- Mais sobre assunto em breve aqui neste blog.