Dados que ainda não tinha. Até ler o fundamental artigo de The Economist, edição especial dupla deste final/início de ano 2013-14. Editada em Londres, recebo semanalmente em minha casa aqui na província baiana.

Dá notícia do assassinato, por estrangulamento, de um delegado de polícia, ocorrido três meses antes da assinatura da Lei Áurea que aboliu a escravidão no Brasil. O crime se deu por volta das 3 e meia da madrugada, no interior do Estado de São Paulo, e teve por vítima um “mulato”, Joaquim Firmino de Araújo Cunha. O estrangulador foi um imigrante dos Estados Unidos da América, o médico James “Ox” Warne, apelidado de Dr. Boi (daí o Ox).

Na década entre 1860 e 1870 em torno de 10.000 sulistas norte-americanos emigraram para o Brasil, inclusive graças a políticas de Abraham Lincoln, que facilitaram essa vinda. Passaram a ser chamados aqui de “Confederados”. A maioria entrou pelo porto do Rio de Janeiro e se estabeleceu em São Paulo, principalmente em plantações de café. E investindo em escravos. À época, um africano escravizado podia ser comprado ao longo do rio Congo, na África, a US$ 25. E, no Brasil, era vendido por até US$ 500!

The Economist reconstitui os passos do norte-americano, partindo da fatídica madrugada do crime, quando uma multidão de 200 homens, donos de escravos, sitiou a casa do delegado da pequena vila de Rio do Peixe. Por conta da má reputação advinda do assassínio, Rio do Peixe teve o nome mudado para Itapira, hoje conhecida como a “cidade dos loucos”, em razão da existência ali de três hospitais para tratamento de doenças mentais.

O delegado tentou escapar. Saltou da cama, sua esposa escondeu-se enquanto seu garoto fugia para pedir socorro. Ao pular por uma janela, o delegado desequilibrou-se. Foi alcançado pela turba enfurecida, que o espancou. Dr. Warne o estrangulou “com sinistra ferocidade”, de acordo com descrição de um jornal que à época noticiou o fato.

Joaquim Firmino de Araújo Cunha

Joaquim Firmino de Araújo Cunha, tido hoje como mártir

Em três páginas, o autor do artigo faz uma síntese da vida do assassino, um sulista norte-americano que combateu na Guerra Civil Americana como médico-cirurgião, integrado ao exército confederado contra o fim da escravidão. Seu pai, que emigrou da Inglaterra para os Estados Unidos como investidor em minas de estanho, perdeu dinheiro.

Quando veio a guerra de Lincoln, o regimento do cirurgião perdeu várias batalhas importantes. Sucessivas derrotas e, ao final, a abolição escrava em 1865, fizeram com que vários sulistas procurassem outras terras distantes para dar continuidade aos seus investimentos na escravidão. O Brasil assemelhava-se a eles como um paraíso ao sul da linha do Equador.

James Warne desembarcou em janeiro de 1866, oito meses depois do fim da guerra civil. Ter sido apelidado de Dr. Boi seria um indício de que se dedicou ao não tão lucrativo mercado de pecuária, de status social inferior. The Economist apresenta as relações entre os interesses institucionais, do mercado capitalista ou proto-capitalista, nos Estados Unidos e no Brasil.

Quando os “confederados” se instalaram aqui, o tráfico já havia sido declarado ilegal, no entanto a prática prosseguia mais lucrativa que nunca. Sucessivas leis, como a do “Ventre Livre” ou a do “Sexagenário”,  foram medidas paliativas e protelatórias – mas que provocaram a ira dos que lucravam com esse mercado. A partir delas, aumentaram as fugas e as rebeliões escravas no país.

São Paulo, “home to the great coffee farms”, Estado que concentrava a grande economia cafeeira, esteve “no coração desse conflito”. Exigia-se das forças policiais que perseguissem e trouxessem de volta, aos seus donos, os rebelados. A postura do delegado da pequena Rio do Peixe, além de tudo por seu background negroide, foi vista como conivente com os escravos fugidos.

Naquela madrugada de 11 de fevereiro de 1888, tornou-se um mártir – a partir da enorme repercussão de seu assassinato, utilizado pelos defensores do abolicionismo no último país ocidental que ainda mantinha a escravidão. Ninguém foi punido. Dr. Boi viveu com sua família no Brasil até o começo do século XX