Há 10 anos o jornal alternativo Província da Bahia já alertava: Lula, no afã pelo poder, tornara-se um cínico (clique para ler). Nesta eleição para a Prefeitura de Salvador, a ser decidida domingo que vem, parece que o cinismo de Lula entranhou-se como regra comportamental de petistas e aliados que querem a eleição do seu trágico candidato, Nelson Pelegrino.

Depois de perder no primeiro turno com um discurso vazio em essência, mas cheio de promessas, a campanha de Pelegrino nessa reta final apela para uma suposta distinção entre “dois projetos”, o dele e o de ACM Neto. Tal distinção é meramente eleitoreira. Não há nela substância ideológica. Petistas e sócios menores, depois do resultado do julgamento do mensalão abandonaram de vez a arrogância de defensores da ética e da moral na política. Tudo agora é uma questão de cálculo para a manutenção, conquista e ampliação do poder. A qualquer custo, mesmo da verdade.

Num confronto moral entre ACM Neto e Pelegrino, qual o menos cínico? Qual o menos mentiroso: o neto do coronel, que a priori não irá para o inferno por sua nascença? Ou a cria beneficiária da “organização criminosa” em julgamento no Supremo Tribunal Federal? O PT não pode alegar coerência ideológica há tempos, muito menos nessa eleição.

O recente palanque do comício de Pelegrino no bairro de “Cazajeiras” (novo batismo de Cajazeiras feito pela presidente Dilma) era a marca da degeneração de sua candidatura. Alí estava a degradação de princípios há muito abandonados pela autointitulada “esquerda”, na Bahia tradicionalmente um rótulo para todos os opositores do falecido cacique Antônio Carlos Magalhães.

Por esse viés tosco, até Nilo (Boi) Coelho virou aliado anticarlista. Que dizer de Geddel Vieira Lima? Ganhou a estatura que não possui com o apoio a Jaques Wagner a partir de 2006. Assim vitaminado, foi poderoso ministro de Lula na questionável obra de transposição do rio São Francisco. Agora, depois de obter de Dilma uma vice-presidência da Caixa Econômica Federal, contrariou o desejo de Wagner e, mesmo provisoriamente, debandou para o lado do DEM-PSDB.

Ser anticarlista já foi uma bandeira dos que se reivindicavam imaculados na política. Mas falar disso hoje é algo totalmente fora de propósito. Todos querem é se dar bem, isto é, tirar a sua lasquinha do Estado. Lula, para relembrar, foi apoiado por ACM na Bahia no segundo turno das eleições presidenciais de 2002, quando esse cacique ainda mandava por aqui, e gostou. Houve município carlista que deu quase 100% de votos a Lula! ACM não somente mandava como tinha amigos cultuados pela chamada “esquerda” brasileira: as duas vezes que esteve na Bahia, Fidel Castro dispensou esses esquerdistas da boca-pra-fora e ficou hospedado no apartamento de Antônio Carlos Magalhães no bairro da Graça.

O governador Jaques Wagner trouxe para perto de si figuras exponenciais do carlismo mais abjeto, a exemplo do seu hoje vice-governador Otto Alencar, e César Borges, governador que ordenou a ação da Polícia Militar no campus da UFBA – truculência que Pelegrino apresenta em sua propaganda, ocultando a autoria e até mesmo o comandante da ação, depois promovido pelo mesmo Wagner.

Todos estavam sobre o palanque em “Cazajeiras”. Pior: o candidato fantoche derrotado do bispo Edir Macedo, “bispo” Marinho da intolerante, rica e tenebrosa Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd). Assim como Mário Kertész, empresário e radialista denunciado na Justiça como promotor de contratos simulados com empreireitas e bancos que resultam em prejuízo estimado em US$ 200 milhões ao município de Salvador. E Marinho? Este sim, em essência, encarna um programa teocrático de permanente guerra contra a religiosidade africana, homofóbico – quer “curar” homossexuais -, de domínio fanático-religioso dos meios de comunicação.

A Iurd do “bispo” Marinho seria a mesma seita envolta em processos judiciais de evasão de divisas e lavagem de dinheiro? Seria a mesma acusada pelos ativistas que lutam pelos direitos humanos e em respeito à diversidade sexual e de culto, por suas práticas nefastas contra homossexuais e as religiões de matrizes africanas – tão caras aos soteropolitanos? Onde estão os militantes “esquerdistas” da Tradição dos Orixás que não condenam essa espúria aliança de Pelegrino com a Iurd? Onde, as feministas defensoras do direito ao aborto? Ah, não falavam sério! O cabresto partidário (ou suas migalhas) é mais importante que suas crendices sobrenaturais? Entendido…

E o candidato do esvaziado discurso anticarlista ainda conta com benesses de um financiador de campanha nada desprezível: a empreiteira OAS, um dia apelidada de Obrigado Amigo Sogro (ACM era sogro do dono), com quem Pelegrino teria negociado apoio para um futuro grande empreendimento imobiliário. Afinal, os participantes do PT na administração do atual prefeito João Henrique também contribuíram para se aprovar o PDDU que abriu as portas para rapinagem especuladora das empreiteiras.

Se é esse o projeto de governo que a população de Salvador merece neste momento, Pelegrino será eleito. Desconsideremos o fracasso de Wagner em políticas de segurança pública (quem é da periferia está mergulhado em medo e sangue), de negociação com professores (a recente greve e as anteriores das universidades estaduais são provas), de saúde.

O PT acha que Salvador pode ser mais um dos seus currais, e que o voto dos soteropolitanos pode ser acrítico, em obediência ao sinhô? Lula comporta-se como um coronelzinho que veio de baixo: suas falas e ações indicam que gostaria de ser um Sarney ou um ACM, no fundo – para mandar e desmandar no Brasil, desclassificando os que ousam criticá-lo. Se lhe dou água, dentadura, bolsa família, seu voto tem de ser fiel ao coronel.

Se a população deseja um contraponto a isso, até para não permitir o total controle da capital, do Estado e do país pela mesma máquina – aí sim que a propaganda nos dirá que estamos vivendo em um mar de rosas – elegerá conscientemente ACM Neto. Não é o ideal. Mas, seguindo a mesma lógica de pragmatismo lulo-petista, apresenta-se como uma alternativa menos viciada que o destemido (quaquaquá) Pelegrino, “prenda esse marginal!“.