
Hoje cada um e todos, bem ou mal, respiramos. O cérebro, da forma que esteja, ainda funciona.
O pulso ainda pulsa.
A isso se chama vida. Cada um tem a sua, com seus tropeços e sonhos. Assim vamos levando…
Até o derradeiro sopro. E tudo que é contingência na vida se acaba.
As paixões, os ódios, os gozos, as lutas, as vitórias e os fracassos – as dores do mundo – para cada um de nós deixa de ser nosso.
Porque já deixamos de ser. A não ser lembranças que ficam para quem se lembre o que aqui fomos.
E depois? Que acontece ao morto? Não digo a seu corpo que vira lama, pó e ossos.
Um filme japonês brinca com esse “depois”. De forma singela, coloquial. Nada religiosa, mística, tenebrosa. Ou filosófica. Não há cena de enterro ou lamentações.
Nunca saiu de minha cabeça, depois de asistir em sala de cinema alternativo na área de TriBeCa, sul de Manhattan, fechado pouco antes da pandemia por falta de público.
“After life” é o título em inglês para o original “Wandafuru Raifu“, dirigido em 1998 por Hirokazu Koreeda.
Depois da vida as pessoas, em carne e osso, chegam andando com os próprios pés a uma espécie de departamento de orientação para a eternidade.
Adentram numa repartição na qual as aguardam equipes de triagem, também de carne e osso. Nada de pregações ou admoestações.
A função de cada membro da equipe de acolhimento individual é saber de quem acabou de sair do mundo dos vivos uma única coisa.
De todos os momentos e instantes vividos por você em sua curta ou longa experiência de vida, qual você escolhe levar para sempre consigo em sua memória daí em diante?
Você somente pode escolher um e apenas um único momento ou instante. Aquele que lhe proporcionou a melhor sensação de felicidade, portanto de paz e harmonia consigo mesmo.

Este escrevinhador em Tokyo, junho de 2012 (foto: Danila de Jesus)
No decorrer do filme, crianças, adolescentes, adultos e anciãos – dos mais variados tipos, dotes e funções – vão chegando ao local de acolhimento, dirigindo-se ao membro da equipe responsável por tal ou qual recém-chegado. Este, identifica-se com nome e sobrenome.
O “orientador”, depois de conferir e repassar a vida do sujeito sentado à sua frente, coloca a questão: Qual flash, de poucos segundos, você opta levar consigo para a eternidade?
O recém-chegado opta – tem até três dias para puxar pela memória.
Com os recursos técnicos de que dispõe (inclusive videotapes com toda a vida de seu tutelado), a equipe técnica remonta, em filme, e exibe o instante que a pessoa escolheu e lembrará para a eternidade.
Para alguns a decisão leva pouco tempo. Feita a montagem de seu momento singular, logo desaparecem no vácuo eterno com o seu instante para sempre.
Outros têm dúvidas sobre qual escolha fazer.
Os membros da equipe de acolhimento são pacientes. Podem esperar até que se decida, alojando cada recém-chegado em um quarto privado. Este pode sair para os campos em ar livre. Pode caminhar, refletir sentado em banquinhos em meio à neve e arbustos.
Até que retorne com a opção feita. O responsável pela pessoa pergunta se já tomou a decisão. Então, reproduz a cena única de cada um.
Depois da vida, que momento você levaria consigo? Este escrevinhador já optou pelo seu.
Criança de shorts vinda da escola no final da manhã, enquanto a mãe preparava o almoço, desaparecia no pomar existente então numa colina entre a favela e o cemitério do Campo Santo.
Ali, sozinho e solitário trepado numa árvore de umbuzeiro, por entre as folhas verdes trespassadas por raios do sol. Cavalinhos voadores, borboletas. Agarrado a um galho horizontalizado, inalava o perfume dos frutos imaturos, fechava os olhos. Advinha a paz dos inocentes.
Lá de baixo da comunidade empobrecida subia sons de vozes das pessoas em suas labutas, no zunido do meio-dia. Vozes de crianças, pais e mães chamando por seus filhos para almoçar.
E o som de uma música ao fundo, tocada em algum rádio, que me tranquilizava. Cuja melodia jamais me saiu da lembrança, se penso naquele etéreo instante que levarei depois da vida…