
Faz um mês regressamos os três dos Estados Unidos da América. Com as finanças em frangalhos mas a alma jovem.
Graças à generosidade e empenho do respeitável filósofo senegalês Souleymane Bachir Diagne, diretor do Institute of African Studies, a Columbia University em Nova York convidou-me a um período de 12 meses como pesquisador sênior visitante.
O projeto de pesquisa submetido ao CNPq em janeiro de 2021 foi bem avaliado pelos pareceristas ad hoc, que indicaram sua aprovação. Pela originalidade, pelo currículo de Souleymane e pela reputação internacional da Columbia University.
Porém lá em cima, a última instância decisória negou a solicitação de bolsa de apoio à pesquisa. Com a justificativa de praxe. Tipo: “O projeto tem mérito mas para pesquisa no exterior o dinheiro tá escasso“.
Solicitei ajuda para redigir o recurso de apelação ao CNPq aos eminentes colegas Olival Freire Jr. e Amílcar Baiardi. Ambos no topo da hierarquia da pesquisa acadêmica no Brasil, conhecedores do método das decisões de agências de fomento à pesquisa.
De pronto socorreram-me. Advertindo ser tão-somente pro-forma o passo recursal, vez ser impossível a direção do CNPq rever suas negativas. O que confirmou-se. Os R$ 130 mil (US$ 28 mil) orçados para a empreitada tinham de ser cobertos por outras fontes.
Além dos vistos que nos asseguravam status acadêmico especial para mim, para Mel, 8 anos, e Danila, sua mãe, como acompanhantes – o que permitia documentos de identificação e acesso às instalações da universidade -, nada mais o convite da Columbia University provinha.
Cabeça dura, decidi bancar por conta própria, com o salário em moeda brasileira, nossa estadia naquele país. Cuja inflação – em dólar – está batendo recordes nunca vistos há décadas. O custo de vida está pela hora da morte, os preços de alugueis de imóveis e alimentos amargos.

Juntei meus parcos caraminguás. Recorri a empréstimos bancários, vendi carro, submeti-me às regras da inestimável amiga de duas décadas Joanie Roney, residente na melhor – em termos de segurança, acessibilidade e vizinhanças – área habitacional do Brooklyn.
Ela accedeu dividir seu apartamento por US$ 800 mensais, desde que cuidasse de Kiyoko, sua gatinha, e Petunia, sua velha cadela. A qual vi-me responsável passear pelo quarteirão, sob tempestades de neve ou não, no mínimo três vezes ao dia/noite, dar de comer etc.
Investi tempo e madrugadas sem sono na busca de financiamentos, propondo parcerias. Debalde.
O dinheiro circula nas mãos dos de sempre e algumas migalhas são distribuídas a quem voluntariamente já tornou-se acriticamente submisso/a. Tive de recorrer a filho na Suiça, irmã/irmão e parceiros daqui e d´antanho.
Pagar ao banco o financiamento do imóvel no Corredor da Vitória, Salvador. Alugando-o a gente solidária, thanks!
Reflita comigo: era aceitar essa condição miserável pela causa em jogo, ou simplesmente resignar-se a permanecer no mesmo lugar.
Ainda que medíocres as “pessoas bem nascidas” no Brasil da Casa Grande & Senzala geralmente não enfrentam tal dilema. Engrenagens e relações de mando lhes oferecem melhores oportunidades, privilégios. É assim que as coisas funcionam.
Depois de tudo, regressamos com saúde. Como pai, senti-me realizado ao ver Mel bem acolhida por seus coleguinhas, professores e staff na PS261 (Public School Philip Livingston). Escola elementar propugnadora de diversidade na qual a matriculei. Todas as manhãs cedo invariavelmente a levava. Morávamos a não mais que dez minutos a pé.
Por oportunizar a essa menina, que terá muitos desafios a enfrentar como toda pessoa negra de pais vindos de favelas, a interação diária com coleguinhas de diferentes culturas e backgrounds, o sacrifício foi recompensado por sua rápida adaptação àquele contexto.
Aprendeu rápido o inglês novaiorquino, além de noções de mandarim, árabe e japonês. Participou de todas as atividades escolares e de after school (essas pagas, ainda que com desconto após apelo). Ingressou num time de futebol de meninos e meninas da mesma série, com treinamento e jogos aos sábados no excelente Brooklyn Bridge Park.

Melhor: fez-se popular entre dezenas de colegas da PS261 por demonstrar domínio com cubos-mágicos – acumulando vitórias em termos de rápida resolução por algoritmos. Por seu afeto e envolvimento em tarefas com os demais, que compareceram em peso no seu aniversário no parque da escola em junho.
Foi presentada por Joanie, que assumiu ser sua madrinha, com viagens de fins de semana para Connecticuti. E cruzando por vôo à Seattle, costa do pacífico, onde fez amizades com uma família que nos hospedou, com menina de mesma idade.
Regressei mais pobre a Salvador. Pobre de marré-de-ci, batendo biela, economicamente fragilizado. Contudo feliz pelo resultado da pesquisa, da estadia, do investimento em Mel.
Agora é manter o equilíbrio mental e respirar. Diz o verso de Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”.