Mata originária: única coisa entre as covas rasas do Cemitério Campo Santo, no alto da suave colina, e as comunidades abaixo – Ibite e Calabar – do que hoje é a Avenida Centenário em zona imobiliariamente nobre da capital da Bahia.
O pomar de grandes e pequenas árvores frutíferas centenárias com seus frutos maduros fazia a festa da garotada das vizinhanças o ano todo.
Era também campo para as brincadeiras da infância, pegas-pegas, alívio de excrementos: não havia rede de esgoto, água potável ou sanitários nas comunidades. Esconderijo para iniciações libidinosas.
No mato, a curiosidade empurrava meninas e meninos para experiências infantis de troca-troca genitais. Tudo às pressas com receio de surpreender-se por algum adulto, antes de a noite chegar porque com a noite advinha o mistério das almas penadas do Campo Santo.

Havia dezenas e variadas espécies de mangas, jacas, cajás, umbus, umbu-cajás. Goiabeiras e araçazeiros, maracujás dos grandes e miúdos que enramam. Bambuzais, pés-de-louco, urtigueiros, bananeiras e bichos semiselvagens – sariguês, perigosos gatos-do-mato, cobras, lagartos, escorpiões.
Trabalharam aquela terra no passado para que fosse tão fértil em frutas. Os pobres adentravam por entre os arvoredos colhendo diretamente os alimentos no chão por entre arbustos ou subindo nos pés das árvores.
O cemitério confundia-se no terreno coalhado de alimento. Quando chovia forte as correntezas arrastavam para baixo da colina restos mortais. Partes de esqueletos – crânios, fêmures etc. – boiavam nas ruas do Calabar nesses períodos, em meio a grandes colônias de sapos barulhentos.
Uma grande mansão, pertencente a um médico doutor que ninguém nunca avistara, estava no meio da colina, onde agora há um posto de combustível com um lava a jato de veículos. Sabia-se ser uma família de posses, branca, que, sim, montara uma casamata entre o cemitério e a favela abaixo. Às vezes, condoída com a miséria dos de baixo, realizava alguma caridade.
Cercas e muros não havia a separar os favelados vivos do empreendimento lucrativo – vez que todo dia há gente a ser enterrada, e também há um preço por isso – da Santa Casa da Misericórdia, o primeiro cemitério “público” da cidade de Salvador.
O empreendimento surgiu da iniciativa privada no começo do século XIX, indo à falência pouco depois. Os poderosos de então arranjaram para que a secular instituição “filantrópica” vinda de Portugal para o Brasil com os primeiros padres jesuítas no século XVI, assumissem o cemitério.
Negros já estavam aquilombados por aqueles matagais, regados de riachos e fontes de água doce que brotavam do nada, desde em que a escravidão negra vigorava na Bahia.

Milhares de hectares de terra nos quais deu-se origem a bairros atuais: Gantois (da Mãe Menininha), Federação, São Lázaro, Alto das Pombas, Cardeal da Silva, Garibaldi, Calabar, Ondina, Graça, Apipema, Chame-Chame – onde nos anos 80 construíram um dos shopping centers da capital.
Também nessas terras montou-se o maior campus da Universidade Federal da Bahia, consolidado entre a Ondina, Federação e São Lázaro, ao lado de torres de apartamentos de luxo. Não faz muito, a Rede Bahia de Comunicação (TV, jornal, rádio) de Antônio Carlos Magalhães também mordeu um precioso naco do terreno.
Todo esse mundo de terra, por séculos matagal e pomares, desde algum tempo está em disputa. Há uma família de negros e negras, gente comum, que se diz herdeira de um ancestral de meados do século XIX que possui uma escritura de detentor desse universo fundiário.
Uma das ações reivindica na Justiça, essa mesma Justiça aliada de plenipotenciários como a Santa Casa da Misericórdia e quejandos, o reconhecimento de direitos de netos, bisnetos e tataranetos como reais proprietários do espólio do que denomina-se Fazenda Mirante, exigindo indenização pela alienação irregular a empreiteiros e município, ou ambos associados, de toda a área que engloba aqueles bairros todos.

Tramita na 4ª Vara Cível e Comercial de Salvador, tendo por autor Nelson Fontes Dias, sucessor em linha direta do detentor originário da ampla propriedade. Nesse caso os réus são gentes poderosíssimas.
Entre essas, sócios da MRM Construtora, empreiteira do condomínio mais caro de Salvador – a Mansão Wildberg, a qual o ex-presidente Lula teria cogitado de residir, no Corredor da Vitória (teria desistido pelo valor que achou muito caro).
A MRM é encabeçada pelo deputado federal Félix Mendonça Júnior (PDT), cujo falecido pai era um lambe-botas do falecido ACM. Compreende com quem os Fontes Dias estão se metendo?
Visto uma tanga verde e amarela, ponho um chapéu com chifres na cabeça, monto numa motocicleta e rumo à próxima manifestação convocada pelo “minto” se os alegados herdeiros obtiverem ganho de causa na Justiça, ainda que o seu pleito seja legítimo.