Entropia social: este, o efeito mais perverso, ouso reafirmar, das políticas materno-paternalistas de assistência a pobres e miseráveis.

Cuja escalada assistimos desde abril deste 2020, por conta da pandemia da Covid-19, que radicalizou o desastre das desigualdades socieconômicas himalaicas já antes existentes.

“Pois, doutô, uma esmola / Para um homem que é são”, já advertia há tempo o cantador popular das causas nordestinas Luiz Gonzaga (1912-1989) em parceria com Zedantas, “Ou lhe mata de vergonha / Ou vicia o cidadão”.

Tal sentença, da verve de dois poetas semi-escolarizados do empobrecido sertão brasileiro, vale como um axioma. Um princípio universal em quaisquer circunstâncias.

A propaganda esconde. Basta um giro atento pelas principais ruas e artérias de uma metrópole, como Salvador, para constatar a explosão, nos recentes meses, de grupos aglomerados em praças e esquinas feito farrapos humanos. Ou carrapatos à espera da benemerência, parasitária, de outrem.

Às favas todos os cuidados e recomendações putativas quanto a distanciamento social, quarentena, o “fique em casa” de “otoridades”, médicos, filósofos, aparelhos como a Organização Mundial de Saúde lá de Genebra, na Suíça.

Políticos profissionais, de governo ou de oposição, porque não têm, não querem ou não podem dar respostas que superem o círculo vicioso da miséria – de onde retiram votos de apoio – fazem de conta preocupar-se com a fome alheia.

De sua parte os famintos, verdadeiros ou oportunistas, acomodam-se. Porque enxergam a possibilidade de tirar vantagem de seu próprio estado de indigência, do qual até passam a regozijar-se.

Sem que se lhes cobrem nenhuma responsabilidade em contrapartida aos “benefícios” recebidos do Estado, de Igrejas, de ONGs, de almas filantropas e de particulares individuais, famílias parideiras de gentes pedintes, por osmose, passam a fazer plantões diuturnos nas calçadas ou sob os viadutos.

Testemunhe-se equipes de agentes de órgãos públicos batalhando para persuadi-las a abrigar-se em asilos equipados postos à sua disposição. Quem disse que querem sair das ruas? Não, ninguém pode retirá-las à força. Por aqui não ser ditadura, cada um vive como quer, faz o que quer…

Cada grupo desses, que somam já dezenas no perímetro urbano da capital, ao que parece disputa e privatiza para si os espaços adredemente definidos.

Ao que tudo indica, fizeram a distribuição territorial do espaço por critérios de parentesco ou consanguinidade ou por consentimento do “líder” do pedaço.

Procuram acampar, coincidentemente, nas proximidades de algum dos inúmeros templos da Igreja Católica. De preferência onde haja aglomeração de transeuntes, tráfego e devotos.

Próximo a feiras e mercados, como o das 7 Portas.

Em Salvador, três pontos nos quais esses grupos se destacam: na chamada Cidade Alta, ao redor da Praça da Piedade e suas imediações.

Onde, numa área em torno de oitocentos metros quadrados, aglomeram-se nada menos que cinco templos católicos tradicionais. Mais dois templos de consumo ou shoppings centers, a estação central do metrô e a de transbordo de ônibus metropolitanos.

Na Cidade Baixa, a coisa começa nas proximidades da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, parte baixa do turístico Elevador Lacerda.

Mas a concentração das multidões de dependentes, provavelmente por obra de algum ou alguma de seus estrategistas, distribui-se entre o Largo da Igreja dos Mares e segue ao longo da avenida que vai dar no Largo de Roma.

Aí está o Santuário de Irmã Dulce dos Pobres, portão de entrada do Caminho da Fé. Recentemente, não importa a pandemia e talvez por isso, inaugurado pelo prefeito da cidade. Dali segue-se à Colina da famosa Igreja do Nosso Senhor do Bonfim, um quilômetro adiante.

Deus, maconha e crack andam pari passu nesses lugares.

Irmã Dulce, hoje Santa Dulce dos Pobres, de batina entre os miseráveis na década de 50 ou 60 ou…

A miséria virou um negócio. Para o doador (políticos e empresas), para o recebedor, para o agiota, para o intermediador, para o atravessador dos auxílios assistenciais.

Razão de ser e existir de tantas instituições/empresas do Terceiro Setor, do discurso teológico e dos partidos de variados espectros ideológicos.

Como não é privativa de ninguém, a esperteza é socializada.

No socorro aos “de baixo”, montam-se estruturas e esquemas. Sejam governamentais, religiosos, para-governamentais, terceirizados, não-governamentais, voluntariosos e marginais. Tudo “a favor”, em solidariedade dos e aos pobres.

A hipocrisia vira moeda de troca.

Em Por uma outra globalização Milton Santos (1926-2001), ao descrever a presença da pobreza na história, afirma ser a mesma estrutural na fase atual do desenvolvimento capitalista.

Não mais sazonal, calamidade acidental ou problema social a ser superado, a pobreza é parte inerente ao cálculo político do lucro das empresas, dos governos, das agências de socorro.

Viviane Forrester, a quem entrevistei em sua casa em Paris, já havia alertado em seu O horror econômico (1997) para o paradoxo resultante da acumulação e concentração da riqueza em contraste com a exclusão social de milhões.

Ao aparelho do Estado compete administrar a miséria, com auxílio da máquina a seu dispor.

Distribuir migalhas de capital, criar esperanças inefáveis frente à realidade técnica que expele e dispensa a ocupação do trabalho braçal, inaugurar programas emergenciais de doação de renda e bolsas de auxílio.

É a política de enxugar gelo. O establishment tem de fazer algo que arrefeça a possibilidade de fúria das massas bárbaras, contendo-lhes os instintos e humores selvagens. Com isso, restringindo o caos a limites negociáveis.

Além do mais, isso rende dividendos eleitorais e lustra a imagem dos governantes.

Parece que os párias, com a percepção mais dos instintos que da consciência, já perceberam ser todas as promessas um jogo de cena. Os políticos, as políticas de assistências gerais não lhes oferecem alternativas concretas de transformação de suas vidas.

Sua postura fatalista – nada muda para melhor em seu grupo social há décadas, seja o país economicamente rico como é – resulta em escárnio perante as ações de quem diz querer lhes ajudar.

Um amigo que sinceramente quis fazer filantropia, integrando um dos vários grupos de espíritas que percorrem as madrugadas distribuindo sopa para os miseráveis, contou-me seu desencanto passadas algumas noites de doação.

As multidões de farrapos humanos que zanzam pelas esquinas acorriam aos automóveis nos quais os voluntários piedosos oferecia-lhes vasilhas de sopa e pão.

Ao sair um doador, minutos depois aparecia outro grupo generoso. Depois de algumas voltas, constatava-se que os desamparados faziam farra com a comida, atirando à sarjeta as diversas vasilhas ainda cheias de sopa e pão. Meu amigo desistiu dessa benemerência.

Os miseráveis de 2020 nas áreas urbanas do planeta há muito já não são como os de Victor Hugo (1802-1885).