Já foi dito por mim mesmo em Nossa Escravolândia (Terceira Margem, 2015) que no Brasil o negro é o lobo do negro. Faltou acrescentar ser a elite de mando a frigideira que aproveita-se da banha.
Neste agosto 2020, por alguns dias de diferença, morreram Jaime Sodré, 73, e Jorge Portugal, 64 anos.
Não culpe-se, eventual leitor dessas maltraçadas, se jamais tenha ouvido falar deles. Foram pessoas dignas, importantes em suas áreas, pelos critérios impostos pela baianidade.

O que aqui interessa é menos a perda. E mais o uso utilitarista, chapa-branca, em sequência à notícia de suas súbitas mortes por complicações cardíacas fulminantes.
O conjunto da mídia mainstream – TVs, rádios e jornais – não costuma oferecer a defuntos negros a reverência, espaço e tempo condescendentes como no caso desses dois.
A menos que enxerguem alguma vantagem, concreta ou subjetiva, em fazê-lo.
Sodré e Portugal foram figuras negras relativamente reconhecíveis no setor cultural – retenha-se o cultural – no Estado da federação mais negrofóbico do país: a Bahia.TM
Jorge Portugal, com seu sorriso aberto para as fotografias, no fundo era um homem de negócios. Tratei diretamente com ele algumas ocasiões.
Numa quase tornou-se meu patrão. A mim apresentado, pelos idos de 2006, como representante na Bahia da “TV da Gente”. Transação nebulosa de Isabel Santos, filha do autocrata presidente de Angola, e o sambista Netinho de Paula.
Deu em nada, afinal. Mas soube mais tarde que fui roubado, junto com Sueide Kinté e a equipe que convidamos, em alguns caraminguás pelos serviços prestados como jornalistas. Se ele soube, não sei.
Na medida em que tinha ambições eleitoreiras no Engenho Velho da Federação, bairro popular de Salvador concentrador de vários terreiros de candomblé, Jaime Sodré achegou-se à Associação de Moradores do Calabar pelos idos dos anos 80 querendo nossa assistência na organização ali de entidade similar.
Havia acirrada disputa de lideranças, talvez até entre as cabeças dos terreiros. Restando evidente de pronto ser makota Valdina, baluarte da religiosidade bantu, sua maior rival.
Jaime Sodré era sombra, cabo-eleitoral de próceres brancos do então MDB, como o playboy Marcelo Cordeiro. A makota repudiava sua submissão, talvez uma estratégia de sobrevivência de Sodré naquele contexto.
Quando Sodré quis ou foi candidato ele mesmo a vereador, por uma ou duas vezes, os caciques puxaram-lhe o tapete, como normalmente ocorre. Fez feio, muito feio, nas urnas. Desistiu de lutar pelo poder.
Décadas para cá recolheu-se à função de inventariante das “raízes do culto”, espécie de “griot”. O que rendeu-lhe certa projeção. Prêmio de consolo obtido a duras penas por alguns que, em terras envenenadas pelas clãs de mando, dedicam-se a encantadores de serpentes.
Convidei-o há três ou dois anos para examinador de uma banca de orientando meu na UFBA em conclusão de curso – o que honrou a todos.
O utilitarismo, contudo, acima denotado joga o negro na geleia dos estereótipos culturais.
É marca institucionalizada do racismo ao estilo de setores acadêmicos, governamentais e jornalísticos.
Permissionários da tutela de determinadas personagens negras. Se essas, em suas vidas, sabem manter-se no devido lugar lhes reservado. Sabem ser “amigáveis”, “educadas”, “finas”, “sorridentes”, “fieis” ao nhônhô.
Numa palavra: é um(a) negro(a) que comporta-se com a “urbanidade” esperada por seus opressores hipócritas. Logo estão convidado(a)s como consultores, opinadores, especialistas em seu cercadinho.
Desde que não sejam ingratos; não caguem fora do penico que se lhes ofertaram.

Jorge Portugal, além de professor e dono bem-sucedido de cursinhos privados para pré-vestibulandos, que deram-lhe fama e dinheiro, tem uma obra poética. Foi letrista, compositor cujas músicas gravadas por astros como Maria Bethânia fazem sucesso desde a época dos festivais dos anos 70/80, a exemplo de “A Massa“.
Quando Jaques Wagner (PT) elegeu o sucessor em 2014 para dar continuidade a seu governo, Rui Costa nomeou Jorge Portugal para Secretário estadual de Cultura. Resistindo a pressões da clientela de Albino Rubim, gramsciano em compotas que debateu-se famelicamene para manter-se no cargo.
A gestão de Portugal, artista antes de administrador ou burocrata manipulador e ardiloso como Rubim, foi igualmente medíocre. Como usual tem se dado na pasta. Resultado: sua substituição, não menos alvissareira, por outrem.
O obituário midiático e nas redes sociais de Jaime Sodré seguiu o mesmo padrão de seu colega que, dias antes, partira para a Cidade dos Pés-Juntos, morada final de todos nós.
Louva-se o papel que desempenhou, como aquele, no campo cultural baiano – entendido como o de “fortalecimento” de matrizes africanas. Que na Bahia confundem-se com matrizes das tradições de orixás e inquices, do panteão das tradições místicas transplantadas com os africanos escravizados aqui fixados por séculos.
Sodré também compôs músicas, menos conhecidas, além de ter sido também professor – em seu caso de instituto federal de ensino e da Universidade do Estado da Bahia.
Faz exato um ano que a Bahia perdeu Ivan Carvalho, figura publicamente reconhecível por seu ativismo.
Inclusive, enfrentou como candidato a Senador pelo PDT o lendário coronel Antônio Carlos Magalhães (1927-2007), criador da poderosa Rede Bahia de Comunicação.
A morte de Carvalho não mereceu sequer um pum midiático.
A diferença de tratamento ocorre pelo fato insofismável de Ivan Carvalho, sem dependência de favores de coronéis, ter sido um militante em tempo integral do combate ao racismo no front eminentemente da disputa do poder político.
Esse território exclusivo dos brancos no Brasil. Em particular no Estado demograficamente mais negro da República.

Exclusividade que ele, Ivan, ao contrário dos outros confrontou por toda a vida, tendo por condição sine qua non relativa autonomia financeira.
Por consequência confrontando, vez contemporâneos, os parceiros que neste agosto foram fazer-lhe companhia lá no Orun.
O tratamento obsequioso dado a Jorge Portugal e a Jaime Sodré – destaque em jornais e telejornais da província – seria pelo fato de ambos serem chapas-brancas, gente que não causa incômodo?
Lamentosas notas oficiais partiram de governador de Estado (PT), prefeito de Capital (DEM) e quejandos. Até o reitor da UFBA, “por oportuno”, pongou nas lamentações, à guisa de homenagem.
Uma legião de culturalistas está na fila dessas homenagens. Cínicas, posto que póstumas – vamos combinar…
De fato, é coerente com a realidade a ideia de que grupos sociais dominantes iludem os negros fazendo-lhes crer que o campo da cultura popular seria um valioso reduto conquistado, onde poderiam exercer toda sua autoridade. Assim, aos comportados, é reservado esse avarento quinhão a título de cala-boca.
Entretanto, também seria importante pensar que a hegemonia, tal como explicada por Gramci, manifesta-se não somente no âmbito das relações materiais, mas também no mundo simbólico, baseada no formação de consensos. Desse modo, podemos compreender que a disputa política permeia todos os espaços de poder institucionalizados que constituem a ordem social vigente.
Creio que a ocupação e disputa devem acontecer em todos os espaços de poder, sem restrições.