Por sobre os lagos, além, por sobre os vales,
as montanhas, os bosques, as nuvens, os mares,
para além do sol, ainda além do éter,
mais para lá dos confins das esferas estelares,
é aí, meu espírito, que te moves, ágil,
e como o nadador que se funde com a vaga,
sulcas, gracilmente, a profunda imensidão,
com uma volúpia máscula, indizível.
Lança-te para além destes mórbidos miasmas;
vai, purifica-te nos ares superiores,
e bebe, como puros, divinos licores,
o fogo claro que inunda os límpidos espaços.
Por detrás dos revezes, da vastidão das mágoas
que esmagam com o seu peso a brumosa existência,
feliz é quem pode, no vigor de um voo,
projetar-se nos espaços luminosos e serenos;
feliz o que, pensando, envia o pensamento,
como uma ave, aos céus onde as manhãs se rasgam,
– Feliz será, que paira sobre a vida e sem esforço reconhece
o que dizem as flores e tudo o que não fala!
– BAUDELAIRE –
“Ontem à Tarde um Homem das Cidades”
Ontem à tarde um homem das cidades
Falava à porta da estalagem.
Falava comigo também.
Falava da justiça e da luta para haver justiça
E dos operários que sofrem,
E do trabalho constante, e dos que têm fome,
E dos ricos, que só têm costas para isso.
E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele sentia, e a compaixão
Que ele dizia que sentia.
(Mas eu mal o estava ouvindo.
Que me importam a mim os homens
E o que sofrem ou supõem que sofrem?
Sejam como eu — não sofrerão.
Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os
outros,
Quer para fazer bem, quer para fazer mal.
A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.
Querer mais é perder isto, e ser infeliz.)
Eu no que estava pensando
Quando o amigo de gente falava
(E isso me comoveu até às lágrimas),
Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos
A esse entardecer
Não parecia os sinos duma capela pequenina
A que fossem à missa as flores e os regatos
E as almas simples como a minha.
(Louvado seja Deus que não sou bom,
E tenho o egoísmo natural das flores
E dos rios que seguem o seu caminho
Preocupados sem o saber
Só com florir e ir correndo.
É essa a única missão no Mundo,
Essa — existir claramente,
E saber faze-lo sem pensar nisso.)
E o homem calara-se, olhando o poente.
Mas que tem com o poente quem odeia e ama?
Alberto Caeiro, Heterônimo de Fernando Pessoa