Dona Regina, principal herdeira do jornal, morta aos 100 anos

Dona Regina, principal herdeira do jornal, morta aos 100 anos

A TARDE, por décadas e até os primeiros anos de 2000 talvez o jornal mais lucrativo da Bahia – quiçá, um dos mais lucrativos do país – anuncia que está falido e não tem como se recuperar.

Pior para a liberdade de expressão, que tem como um dos seus pressupostos o pluralismo de opiniões publicadas. Consequentemente pior para a sociedade, que vê estreitada a já tão escassa oferta de divergências de informação, resultante da salutar concorrência entre os veículos de comunicação massiva.

Leio, sem desmentido da família proprietária da empresa que edita o jornal, que busca-se uma solução de mercado para não cerrar as portas de vez. O dead line é junho próximo. Desemprego à vista. Postos de trabalho não apenas fechados, mas extintos.

  • BRIGA POR LATIFÚNDIOS

Se nenhum investidor interessar-se em adquirir o jornal, o que significa levar junto as dívidas acumuladas em milhões de reais e dólares (quanto, somente uma auditoria isenta poderá dizer), o centenário jornal, fundado em 1912 por Ernesto Simões Filho (1886-1957), acaba daqui a dois meses.

Era uma vez, portanto, um diário que hegemonizou o mercado de imprensa do terceiro maior Estado (em população) do Brasil. Criado para defender posições político-partidárias alinhadas com o grupo de Rui Barbosa, o jornal fale unicamente por conta de má gestão.

São do conhecimento público os desentendimentos entre os dois ou três ramos da família herdeira. Desde pelo menos meados dos anos 90 transformaram a Redação do jornal em mini-latifúndios, dentro dos quais cada um é o seu coronel.

Enquanto viveu com energia e vigor, Regina Simões de Mello Leitão (1912-2012), a filha à qual Ernesto deixou a maior parte das ações da empresa, impunha algum controle aos doidivanas. Já que residia no Rio de Janeiro, fez isso delegando totais poderes a Jorge Calmon (1915-2006), uma espécie, eu diria, de Príncipe (Maquiavel) do jornalismo baiano.

Espécie de "príncipe" do jornalismo, Jorge Calmon foi desautorizado por herdeiro

Espécie de “príncipe” do jornalismo, Jorge Calmon foi desautorizado por herdeiro

Jorge Calmon montou, por quase 50 anos à frente da empresa, um triunvirato com Arthur Couto, manda-chuva da parte comercial, e Cruz Rios no operativo. Dr. Jorge, como era chamado, pediu para sair em 1996, na sequência de uma série de conflitos “de gestão” a partir de interferências diretas de um dos filhos da matriarca, em edições do jornal.

No período que cobre os anos de 60 a meados de 90, A Tarde quase não teve concorrente no mercado de comunicação. Examinei os seus balanços contábeis disponíveis, entre as décadas de 70 e início de 90: seu lucro era exorbitante, em comparação com a concorrência. O resultado altamente positivo do negócio era obtido por uma combinação de fatores mercadológicos.

  • REINO DO ABSOLUTO

Por sua situação privilegiada de quase monopólio no setor de mídia impressa, A Tarde tinha autoridade para impor preços e influenciar tendências.

Seja na sua tabela de anúncios, a mais cara do país em se considerando a relação de audiência (custo/por 1.000). Todos queriam anunciar em A Tarde pelo retorno imediato. Daí pagarem o que o jornal exigia (lei elementar da oferta e procura). Seja no pagamento de salários.

Nesse item, o jornal adotava a política de remunerar mal, ainda assim melhor que a concorrência. Nunca na proporção dos seus invejáveis lucros financeiros. Para ser menos duro, pagava salários na Redação jamais abaixo do piso, e razoavelmente os de chefias e editores.

A antiga sede do jornal, na Praça Castro Alves, hoje em obras para abrigar um hotel Fasano

A antiga sede do jornal, na Praça Castro Alves, hoje em obras para abrigar um hotel Fasano

A direção da empresa fazia vistas grossas se seus chefes e editores, utilizando a importância que a função ocupada no jornal prestigioso lhes dava, acumulavam outros dois, ou três empregos. Inclusive de assessorias de empresas e corporações importantes, cujos interesses se conflitavam com a qualidade da informação. Alguns, mesmo que poucos, fizeram seu pé de meia dessa forma.

Quanto a colaboradores de artigos, textos e produtos outros, o jornal sempre foi casquinha: nunca paga. Até hoje. Porque está assim de gente de todos os tipos e escalões ávida em ver seu nome publicado em suas páginas de opinião.

  • HIPÓTESE DO ERRO

Não é a primeira nem a derradeira vez que uma empresa por tanto tempo bem sucedida em seu setor vai à bancarrota. Na última ocasião em que troquei ideias com alguém lá de dentro sobre o assunto, alegava-se erro estratégico nos anos 90, quando se endividou com empréstimos bancários (no exterior, em dólares?).

O dinheiro foi dito para remodelar a sede e construir novo prédio de não sei quantos andares, ampliar a Redação, aumentar sua carteira de atividades, abrindo uma emissora de rádio e portais multimídias. Para demitir funcionários e por no lugar “sangue novo”, contratar consultorias e novos “papas” da comunicação, exportados de escola espanhola e do eixo Rio-São Paulo-Brasília.

A nova sede na região do Iguatemi, foi ampliada nos anos 90

A nova sede na região do Iguatemi, foi ampliada nos anos 90

Diante da análise sobre a “ascensão” econômica de “um novo tipo” de leitor, das classes de consumo D e E (ou seja, o povaréu), a empresa, por fim, aventurou-se em lançar um novo diário impresso, do chamado “jornalismo popular” (como se todo jornalismo não o fosse), de leitura ligeira – o jornal Massa! Até para tentar refrear o crescimento mercadológico, durante os últimos anos, do Correio da Bahia. Este sim, se remodelou totalmente – até no formato e no nome, agora simplesmente Correio* (com um asterisco).

  • NOVOS TEMPOS

Fundado em 1978 pelo poderoso Antônio Carlos Magalhães, foi um jornal desacreditado, raquítico entre os concorrentes, sem penetração. Depois da morte de ACM, os herdeiros do patriarca, donos da tentacular Rede Bahia de Comunicações, profissionalizaram a Redação, também com consultorias externas e contratações idem.

Resultado? Aos poucos posicionaram positivamente o Correio*. Que vem adquirindo imagem distinta do passado, avançou e, impensável anteriormente, passou a tiragem e circulação do principal concorrente.

Aquele upgrade de A Tarde foi completado nos primeiros anos de 2000. Porém, da segunda metade da primeira década deste século para cá, o jornal vem claudicando. Não tem sequer um domínio próprio para o seu site na Internet, abrigado no UOL. Piorou a qualidade de seu texto e de suas reportagens.

Viu a carteira de assinantes e de venda em bancas desabar: se a media de sua tiragem diária nos anos 90 era de 80 mil exemplares (aos domingos bateu os 130 mil), hoje não chega à metade. A rádio faz água, assim como os serviços de entrega de noticiário em plataformas portáteis. Ou seja, algo deu errado. E muito errado.

  • QUEM VAI INVESTIR?

Há tempos, quem foi aluno meu na Faculdade de Comunicação da UFBA sabe disso, advogo mais concorrência no mercado de jornais comerciais na Bahia, Salvador como sede. Independentemente do avanço de novas plataformas tecnológicas, o diário impresso guarda uma particularidade que nenhuma outra se lhe furta: seu poder de registro documental escrito, permanente.

Não fátuo, como na TV ou no rádio, ou líquido, como na Internet. O que fascina a todos é a palavra impressa em tinta sobre o papel, ver seu nome como assinatura de uma matéria.

Um “choque de capitalismo” é de que se ressente o mercado de jornais na Bahia desde a segunda metade dos anos 90.

A última experiência foi com o Bahia Hoje, de melancólico final. O Jornal da Bahia, que ACM no poder estrangulou, foi vítima do empresário Mário Kertèsz, que o havia adquirido para transformá-lo em 1992 em papel higiênico, sob auspicios de João Santana Filho, o Patinhas.

Extinto, até hoje o JBa. está em dívida. Kertèsz, ex-prefeito da capital, hoje é dono, entre outros negócios, da Rádio Metrópole, adquirida do também extinto Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro.

Na Bahia o problema é: onde encontrar um capitalista com sede de ganhar dinheiro com jornal? Se o setor mais lucrativo no capitalismo hoje é o especulativo-financeiro, isto é, bancos e derivativos? Alguma empreiteira? Dessas envolvidas com a operação Lava Jato? Alguma telefônica? Ou seja, a liberdade de opinião está sob perigosa ameaça.

  • UMA REFERÊNCIA AMEAÇADA

Quanto aos trabalhadores, jornalistas, fotógrafos, gráficos, chargistas e demais, estes são os mais vulnerabilizados. Seus sindicatos, enfraquecidos e com lideranças fiéis a partidos políticos, quase nada podem fazer – a não ser homologar a onda de demissões.

A máquina governamental (Estado e Município, incluindo executivo e seus parlamentos) se constitui, nessa quadra, na única tábua de salvação, diante do aviltamento imposto. Daqui a pouco não haverá mais jornalismo. Só haverá public relations, propaganda ou publicidade. E Big Brother.

Se fechar ou se for vendido a um aventureiro desses qualquer, A Tarde deixará, ao menos por um grande período, a sensação de terra-arrasada no jornalismo baiano. Por ter sido um produto importante até pela carga simbólica-cultural que Salvador e sua gente letrada gozam.

Perder-se-á um referencial. Mesmo para as faculdades e escolas de Comunicação que, afinal de contas, como justificar a sua nada barata existência?

A Tarde logoEu estudava em Nova York (doutorado pela USP) em 1999 e fui ao aeroporto JFK me despedir de uma amiga de volta a Salvador.

Esbarrei no local com um dos herdeiros de A Tarde, com acompanhantes, entupido de pacotes e malas, aos risos. À maneira da febre que essa gente tem de ir às compras nos Estados Unidos gastar tudo o que têm ou pensou que tinha.