NA MAIOR PARTE DA VEZ nós, primatas (fêmeas e machos), somos canalhas covardes e dissimulados. Ainda mais se convivemos em entranhas podres como ONGs e círculos acadêmicos e restritivos, como os universitários. Nestes, desde 1991 decidi investir.
Adianto que menos por opção de vida que escassez mercadológica. Depois de ver colegas muito mais velhos na Redação de A Tarde tratados como lixo e ali prisioneiros, posto que não se deram conta a tempo de sua descartabilidade pelo patrão.
Quando resolvi abandonar uma carreira de publicitário em marketing político, ganhando muito bem e cercado por “hostess” pagas por terceiros, numa das então entre as 10 maiores agências publicitárias do Brasil, a Propeg. Os donos, o xará Fernando Barros e seu sócio Rodrigo Sá Menezes, acho que não entenderam nada da minha atitude à época.
Por tudo sempre tive em conta em minhas já fatigadas retinas (Drummond) a companhia de um Albert Camus n´O Estrangeiro, de um Jean-Paul Sartre d´A Idade da Razão e, acima de tudo, o Fernando Pessoa do Poema em Linha Reta.
Vicejam canalhas entre nós – tenham falo ou vagina entre as pernas -, as bem-intencionadas mentes iluminadas que tudo condenamos nos outros (“O inferno são os outros”). Canalhas e covardes, repito, que primamos por nossas carreiras em primeiro lugar, evidentemente dissimulando nossa egolatria com retórica socialista. Alguém já disse em outras palavras: na conjuntura atual eles, os canalhas e covardes, os medíocres, venceram. Ser medíocre é triunfar, digo eu.
Acho, e peço desculpas por usar esse método comum de confirmação de nossas certezas: o achismo -, que é de um personagem de Tennessee Williams (1911-1983), em A Streetcar named desire (Um Bonde Chamado Desejo), a frase dita em tom de constatação melancólica a uma altura da peça. Em minha vida de atribulações sempre tenho dependido da bondade de estranhos (aqui no sentido de desconhecidos).
Sim, sei da maldade da natureza humana, que não escolhe gênero nem cor nem cultura. Mas também da possibilidade de ações generosas, o que redime aquele princípio original tendente ao egoísmo – isto é, o ego maior somente ultrapassado pelo uso de artifícios químicos.
Discordo até de Santo Agostinho ou do Paulo das epístolas: nem o amor redime. O que redime é a humildade, mas quão duro é manter-se todo tempo em estado humilde, perante o sarcasmo permanente dos adversários.
A grandeza humana não é coletiva, mas se exprime em gestos individuais, particulares, silenciosos, sem alardes. É assim que jamais esquecerei daquela madrugada de março de 2009 em Strasbourg, região Alsácia, fronteira da França e Alemanha, quando um mendigo de rua me socorreu.
Era minha última de sete noites, antes de pegar o avião para a Bahia no aeroporto de Frankfurt, na cidade que hoje abriga uma das sedes do Parlamento Europeu. Obriguei-me, com pouco mais de 150 euros, à estadia num hotel que barganhei preço uma semana antes, com o fito de levantar dados em arquivos e entrevistar pessoas que conviveram com o geógrafo Milton Santos, do qual escrevo a biografia, que ali fez seu doutorado (1958-59). Eu era um pós-doutor na Freie Universität Berlin.
Já com a passagem de ônibus ao aeroporto comprada com antecedência, vaguei aquela tarde pelas ruas da cidade, aguardando a hora, dia seguinte às 5h da matina. No bolso, apenas moedas que dariam para um ou dois cafezinhos. Era o fim do inverno e o vento frio e cortante. Ao anoitecer, mochila às costas, procurei abrigo na estação central de trem de Strasbourg, belo centenário edifício remodelado.
Mudando de assentos, livro pregado aos olhos, alguns passageiros em trânsito puxavam conversa… Assim foi até que, depois das 23h, o movimento de trens e de pessoas foi se rareando. Então procurei um determinado banco, onde um trapo humano, com trapos sujos por vestes, barbudo e faces enrugadas, dormitava. Sua pele era alva. Fiquei a seu lado, quieto, na grande estação vazia. E acho que também dormitei.
Fomos despertados pelo sacudir do cassetete de um segurança fardado com quepe. Que nos disse que já era meia-noite e a estação iria ser fechada. Tínhamos que nos retirar. Nos arrastamos até a porta de saída e o frio lá fora havia aumentado. O farrapo humano sugeriu que procurássemos outro abrigo, ele que conhecia as ruas do centro da cidade já quase sem vida. Então eu o segui pelas pontes que cortam o rio, ligando uma parte a outra, massacrados pelo ar gélido.
Depois de muito procurar o desconhecido sugeriu que nos aboletássemos no banco de uma parada de bonde (tram), deserta. Defronte havia um prédio. O mendigo, largando suas tralhas comigo, atravessou a pista escura e começou a apertar ao léu botões de interfone. Do lado de cá eu ouvia fiapos da voz francesa dele fingindo-se morador que perdera as chaves e pedia que abrisse a porta. Após três ou quatro tentativas insucessas, ele regressou para o meu lado.
Já era mais tarde quando, de súbito, deu um pulo. Um morador chegava ao prédio e ele correu ao encontro. Era um jovem que parecia ter chegado da farra, com o qual o mendigo trocou palavras. Então o morador entrou e o estranho me fez sinal com uma das mãos, enquanto a outra segurava a porta. Eu peguei nossos trapos e entrei com ele no saguão do prédio, enquanto a segunda porta que dava acesso ao interior do edifício se trancava.
Poderíamos ter congelado lá fora aquela noite, não fosse esse ser humano jogado no chão desse prédio, enrolado em suas tralhas enquanto a manhã vem ao nosso encontro. Outros moradores esparsamente adentraram, em silêncio, com olhar curioso aos dois farrapos jogados ali um ao lado do outro, guardados do frio externo.
Era 4 e meia da manhã quando cuidadosamente levantei, peguei minha mochila, olhei o sujeito quase querendo-o beijar naquele rosto vincado de sofrimento.
O ônibus me levou a um dos mais movimentados aeroportos do planeta. De onde peguei meu voo para uma reunião com as gentes doutas, bacanas e legalzinhas da minha universidade.
Belíssima história, grande Conceição!
Uma história boa para refletir. Não tão somente pela bondade do maltrapilho, porque os mais pobres são sempre os mais acolhedores e os que mais repartem, talvez por sentirem na pele as necessidades, as faltas, as ausências, sobretudo dos governantes, mas principalmente nos nos conduzir a pensar a vida, os dogmas, as escolhas, impressos na título escolhido, “viva os canalhas gente boa e legalzinha”. O texto nos leva a refletir a sociedade em que vivemos. Muito bom.
Que belo exemplo de solidariedade e humanidade. E que belo texto, digno de se tornar um romance-ensaio sobre nossas (humanas) ações.
Pingback: Viva aos canalhas gente boa e legalzinha! | Valdeck Almeida de Jesus
Comovente e, infelizmente, um duro retrato da realidade. A academia se esquece da máxima: quanto mais estudamos um objeto, mais fácil perder o seu foco.