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Um amigo-irmão, que por incontáveis vezes deu provas de ser muito mais que amigo ou mesmo mais que irmão ou irmã dos que tenho de sangue, Romenil Silva Sena me veio à memória depois que li na The Economist, semanário que assino, matéria falando de fraudes e engodos metodológicos em práticas acadêmicas (“Power prose”, p. 68, jan. 13-19, 2024).

Mais abaixo explico sobre o cerne da matéria.

Uma das pessoas mais argutas com quem tenho convivido já por quase duas décadas, Romenil é um colega de trabalho da minha mesma geração na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Facom).

Sandro Santana, egresso bem sucedido dessa unidade, diz considerar Romenil “a mente mais lúcida da Facom”.

Sabe das minhas grandezas, das quais muitos duvidam – ele não! – e das minhas baixezas mais do que ninguém no planeta Terra – noves fora a ABIN. Inclusive minha Abin particular…

Por duas décadas temos estado juntos e misturados para tudo o que deu e veio, se foi e retornou. No cotidiano da labuta na Facom e, complementarmente, fora da faculdade.

Foi a pé comigo de meu endereço à colina de Nosso Senhor do Bonfim, filmando eu subir de joelhos alguns degraus da igreja, em agradecimento por um dindim alcançado!

Se eu morrer primeiro, sei que ele depois de chorar minha partida vai comer um feijão de corrute na feira de São Joaquim, beber umas ervas-doces, cambuís e Schins em homenagem a esse seu colega, que ele sabe a ele fiel para o que der e vier. Também farei e replicarei o mesmo, amigo!

Muito grato por tê-lo conhecido, seja em bons momentos ou em maus. Muita gente em Salvador da Bahia identifica-nos quase como almas-gêmeas. Ele é católico praticante, devoto; eu nem tanto.

O grande ser humano Romenil, também amigo personalíssimo do crítico de cinema André Setaro, em foto que me enviou no Carnaval de Salvador deste ano

Na função de técnico-administrativo, já poderia ter se aposentado há dois anos. Suspeito que uma das razões porque ainda não o fez, afastadas outras de cunho material, é por solidariedade a este escrevinhador, que está pagando pedágio por alguns anos mais no batente.

O ambiente da academia, especialmente, mas não apenas, as áreas de Ciências Sociais e de Humanas , é empobrecido pelo pensamento único. Isso inclui a militância das organizações estudantis e sindicais tuteladas pelo espectro político hegemonizado há algumas décadas pelos PT, PCdoB e assemelhados.

Romenil, ainda que por períodos representante do pcdobista sindicato da categoria na unidade, sempre resistiu em ser uma maria-vai-com-as-outras. Criou desafetos por ter discernimento, pensar por si e tentar separar o joio do trigo.

Como depois da redemocratização em 1988 no Brasil joio e trigo são quase a mesma coisa, ele cria desafetos a torto e a direito. É um anti-lulista radical num contexto adverso para quem pensa de sua forma. Quando Bolsonaro despontou em 2017 como antítese petista, Romenil vestiu a camisa verde-e-amarela com fé.

Se o confronto dizendo não se iludir: política é terreno movediço; Lula e Bolsonaro são animais políticos profissionais, duas faces da mesma moeda que em primeiro lugar pensam em si e nos seus; não se surpreenda se mais adiante, por sobrevivência, possam estar juntos no mesmo palanque (vide Alckmin) – uma chapa Michelle-Janja pode ser imbatível no futuro, alerta nossa amiga Rebeca Teles -, ele prefere seguir adiante em sua crença.

Como os lulistas seguem fiel na deles.

Assim, esse grande amigo, afetuoso com minha caçula (o afeto é recíproco: ela o chama carinhosamente “Tio Mimimil”), do qual não troco a amizade nem por paixões viscerais que vieram e se foram, ele permanecendo… – é como um estranho no ninho dos supostos “sabichões”.

Sejam sabichões doutos (em lugares como a Facom proliferam), sejam os que, por déficit cognitivo e preguiça (idem) creem no que falam e escrevem os doutos. Ou William Bonner.

  • RELEMBRANDO SOKAL

A fraude, o chute, o plágio (ou “auto-plágio” como quis relevar uma “sumidade” da Facom pegada com a mão no galinheiro), a cópia, o roubo são práticas do método científico-acadêmico das universidades mundo afora.

Particularmente, mas não apenas, nas áreas de Ciências Sociais, de Humanas e nos Estudos Culturais – comunicações, enfim. Alan Sokal demonstrou isso em 1996, no chamado “Escândalo Sokal“.

Qual foi seu experimento? Para testar a seriedade ou acuro intelectual de um “journal” (revista científica indexada, a que todos acadêmicos são exigidos submeter artigos que devem ser aceitos para publicar depois de crivo de examinadores “às cegas”), Sokal escreveu um artigo sem eira nem beira, juntando dados estapafúrdios, sem nexo algum – e a respeitada revista Social Text (de classe, raça, gênero e quejandos) aprovou e publicou.

Título do artigo: “Transgressing the Boundaries: Towards a transformative Hermeneutics of Quantum Gravity” (Transgredindo as Fronteiras: Rumo a uma Hermenêutica Transformativa da Gravidade Quântica). Depois de publicado Sokal veio a público e revelou que nada do que escreveu era sério! O mundinho acadêmico desabou.

Resolvi eu mesmo, como acadêmico, testar a fraude desse mundinho. Daí a lembrança que sobreveio de meu amigo de fé da Facom.

Estávamos em Barreiras, oeste da Bahia, um grupo de mais de 30 alunos sob minha coordenação em atividade de extensão naquela região de fronteira despontada como pujante produtora de riqueza proporcionada pelo agronegócio da soja.

Recepcionados à época com reverência, apenas por sermos da UFBA, por representantes da política, da igreja, do Rotary Club, do Exército, das faculdades e universidade local. O epíteto da atividade era uma mesa-redonda em local cujo auditório, lotado, cabia cerca de trezentas pessoas.

Autoridades à mesa, discursos eloquentes etc. Além dos alunos, dois técnicos de vídeo e audiovisual da Facom me acompanhavam, registrando com câmeras o evento. Encerradas as falas iniciais dos representantes na mesa, um estudante levanta-se e dirige uma pergunta a este escrevinhador, seu professor.

“Fernando, por que o conhecimento acadêmico é todo eurocêntrico, branco? Será que nunca existiu na Antiguidade qualquer contribuição de africanos na ciência, na matemática, na filosofia?”

Na hora eu encarnei uma Bárbara Carine rápido. Embora penso que ela, minha quase ex-vice candidata a reitoria da UFBA em 2022, sequer cogitava performar como performa hoje.

Sem pejo, microfone à mão, respondi, voz firme, alternando o olhar para a plateia e as autoridades e doutos sentados a meu lado na mesa ao alto:

– Ótima pergunta, Wilson, ótima pergunta! Evidente que sim, existiram grandes filósofos e cientistas negros na África, muito antes da construção das bases do conhecimento greco-romano de que o Ocidente é herdeiro. Acredito que nenhum de vocês aqui presentes, ou ausentes, ouviu falar no filósofo negro dos fundões das planícies e savanas africanas que agora vou citar o nome.

Virei para os mais academicamente circunspectos da mesa, mas também para o prefeito e a deputada estadual que bancou parte de nossa estadia, mulher do prefeito, e fui indagando um(a) por um(a):

– O senhor, a senhora, já ouviu falar no filósofo africano de nome grego… Romenil Supapoulos?

À medida em que perguntava, os do meu lado mexiam a cabeça em gesto negativo. Então, depois virei-me diretamente para o aluno que fez a pergunta – à época, o rapaz mais cobiçado sexualmente pelas colegas e, Wilson que me desculpe se cometo uma heresia, pelos colegas ou professores da Facom (soube que faz carreira como modelo bem pago):

– Assim respondo à sua pergunta. Romenil Supapoulos é quem está por trás de toda a filosofia grec0-romana. Foi professor de Sócrates, de Aristóteles, de Platão e dos demais. Acontece que, por ser negro, omitiu-se isso da história do conhecimento. Por puro racismo, puro preconceito de cor.

Meu amigo Romenil era um dos câmera men que filmavam a atividade.

Sem nada ele saber de antemão, não deu para ver a sua reação no momento em que utilizei seu pré-nome para testar a hipótese de que, a depender de quem fala…

Quem ousa contestar o que diz um “professor-doutor”, ainda que diga merda? Diz ou escreve com pompa. Tem titulação. Seu discurso é o discurso de autoridade.

Com Wilson e outros alunos que me acompanharam na viagem, horas antes durante o almoço num restante à beira do Rio de Ondas de Barreiras, enquanto trocávamos impressões sobre o tema do engodo acadêmico na UFBA e alhures, a questão já havia sido colocada.

Sobrevinha um problema ético: qual limite estabelecer para que o teste da hipótese não descambasse para o desrespeito a quem estaria presente? Ainda mais porque não haveria tempo oportuno, como em Sokal, para revelar que tudo aquilo não passava de um embuste.

Nada foi alterado nem será desde então, ainda que a matéria de The Economist diga que a nova editora-chefe da Psychological Science pretenda apertar o cerco a quem queira publicar nesse journal.

Quanto a nós, por tempos estudantes da Facom que o tem em boa conta e coleguismo chamam de Romenil Supapoulos, até o presente, esse ser humano generoso que é meu amigo.