Lys encontra Uidá em Varsóvia na tarde de 2/03/22, depois de duras horas de fuga

Faz uma semana hoje. Era 11:10 da noite de quarta em Nova York onde me encontro e quinta-feira 24 de fevereiro, sete horas a mais, em Kyiv, capital da Ucrânia, quando iniciamos contato via WhatsApp.

(Kiev é a grafia russa. Depois de 2014 os ucranianos grafam e pronunciam Kyiv, no alfabeto cirílico ucraniano, o nome da cidade que há mais de mil anos deu origem à nação da qual a Rússia, que agora agride, deriva).

Nenhum academicismo antroposociológico ou “desconstrução”, “resignificação” “de fala” e outras elucubrações têm qualquer importância.

A filha que até oito anos atrás era a minha única filha, portanto centro especial de cuidados – seus então dois irmãos são meninos – informava-me estar em fuga debaixo de bombas. As forças armadas de Putin, o autocrata russo, atacam Kyiv.

Não sei se Putin tem filhas. Hitler tampouco. O Papa sei que não. Marx, Stalin, Che Guevara, Mao Tse Tung, Michael Foucault, Marilena Chauí ou… quem sabe? Judith Butler?

¨- Pode ligar a qualquer hora”, escrevi.

“-A internet tá instável”, replicou Lys.

“- Poderá piorar a comunicação em geral, se é uma guerra declarada”, respondi querendo advertir lembrando a famosa “Lei de Murphy”.

Como posso querer melhorar ou mudar o mundo sem antes querer melhorar dentro de mim, de minha casa, aqueles que são meu sangue?

Meu sangue estendido vale para minha comunidade (por exemplo, a favela na qual nasci) e os que assemelham-se a mim, na labuta pela dignidade. Mínima que seja.

Fui com Mel e sua mãe a Kyiv visitar Lys por uma semana em fevereiro de 2019. Veja esse vídeo. Queria conferir em que lugar minha filha se meteu.

Depois de sete dias percorrendo lugares e conversando com pessoas nas ruas, metrô, cafés, a impressão, fruto do preconceito que tinha (“são eslavos, são duros, são racistas”) foi contrariada pelo contato. Aberto, até a culinária pareceu-me boa.

O mundo desigual, confuso, briguento. Há guerras esquecidas aí afora, dura anos no Yemen, outra no Sudão, outra na Etiópia, em Moçambique, em partes do oriente médio, das Américas e no mar da China. Onde quer ela Lys estivesse a merda seria a mesma. Racismos e sofrimentos em toda parte, não tem jeito.

Porém, nada melhora se antes não tentamos melhorar nós mesmos ou os a nosso lado. Mesmo a 7.500 km de distância.

A partir do início de janeiro deste ano alertei Lys. Filha, está na hora de sair de Kyiv.

Pedi para combinar com Roman. Parceiro por quem Lys pediu demissão como chefe da editoria de internacional de telejornal da rede BandNews, em São Paulo. Ela antes trabalhara em mídias de mercado financeiro, é inteirada em investimentos e aplicações complicadas na bolsa.

Em outubro de 2018, depois das formalidades de noivado organizado em São Paulo por Jane, a mãe dela, não sei se decepcionada pela derrota do candidato do coração de ambas, Haddad, à Presidência da República, a mocinha trocou Brasil pela para nós distante Ucrânia. Fazer o que se somos donos dos nossos próprios narizes?

Viajou com o rapaz, que conheceu num site de namoros (ela sempre muito namoradeira). Roman, falante do português, também pediu demissão do escritório de empresa chinesa de comércio exterior com sede no Brasil, onde estava fazia mais de dois anos. Como fala mandarim, alemão, inglês etc. etc. etc…, tinha mercado. Filho único, seus pais aos arredores de Kyiv demandavam por ele. Ainda na guerra demandam, por isso ali permanecem.

Coração, território insondável. Diz Riobaldo, ou Diadorim… em Guimarães Rosa.

Lys desde os 13 anos domina o inglês de traz pra frente. Investi. Escreve e gosta de literatura. Jane Austen ela leu na língua original, quase tudo antes dos 16. E mais e mais autores e autoras em inglês, por escolha própria.

Já picou a mula sozinha por Santiago do Chile e pela floresta amazônica. Beijou muito na boca e aos 19 anos, nervosa, marcou um encontro comigo num café da Avenida Paulista para segredar-me ter entregado a virgindade. Ao parabenizá-la pelo feito, corou: “Todos os pais, nessa hora, reagem com bolodório moralista. E você simplesmente me dá parabéns!?”

Essa bem-humorada menina tem sido companheira e conselheira de um pai maluco que desde cedo, sozinho e separado, ela sempre acompanhou. Já me viu chorar e me viu muito bravo. Até com ela. A partir de São Paulo, onde a mãe soteropolitana – na época modelo exuberante a meus olhos – fixou-se, seus olhos me acompanharam e vice-versa.

Não houve lugar ou namoradas quantas, fixas ou passageiras, desde quando ela tinha cinco ou seis – agora está com 28! – para o/a qual não trouxe para desfrutar. Estrangeiro ou Brasil adentro – Pernambuco, grotões de Minas Gerais, ela com medo das quedas d´água, sertões e fronteiras da Bahia. Mundo afora.

Personagem de Maurício de Souza, se tinha melancia, torta de laranja e muita salada de alfaces, minha filha sempre foi comigo onde a levei. Entre o irmão mais velho, desde os seis na Suíça, hoje na dele, thanks!, e o mais novo, Ariel – um iconoclasta nas artes musicais e nas letras – em Sampa como ela, de outra mãe, Lys sempre exerceu papel central. Incumbindo-se de colocar nos eixos um ou outro. Que jamais a desrespeitaram. Por isso a amam até mais que eu!

Cruzamos juntos de trem, ônibus e avião, os Estados Unidos da América de leste a oeste ida e volta entre janeiro a março de 2011. Viagem duca!

Em cada parada nas cidades fui sendo pago para oferecer letctures em Universidades de Boston, Baltimore, Providence, Washington, DC, New York, Ohio, Chicago, California, Arizona etc. Ela, muito melhor que eu, corrigia meu inglês de carroceiro. Ou tirava sarro depois.

Minha filha, exausta e temerosa, com seu gatinho em estação de trem rumo à fronteira

Lembro Lys na ocasião, aos 16 anos, em importante evento em auditório da Harvard University, organizado por ninguém menos que Henry Louis Gates Jr., pedindo a palavra à minha revelia para contestá-lo. Há testemunho insuspeito: estava na mesa o afamado historiador João José Reis, de Rebeliões Escravas no Brasil, e a professora Wlamyra Ribeiro de Albuquerque, intelectual de estofo.

Saia justa à época ela teve com importante professora da University of Ohio, que amavelmente nos hospedava. As discussões político-intelectuais entre as duas foram frequentes e ao que parece irritavam tanto a senhora que numa noite esta recomendou a Lys: “Você está precisando fazer yoga, querida”. Aos 16, a boa anfitriã cinquentenária…

Além de em Salvador todos os anos possíveis – ela nasceu nessa cidade, mas São Paulo é a cidade que adotou, formando-se em Jornalismo na PUC – Lys acompanhou-me em todos os lugares de estudo. Bem humorada e amiga.

Uidá, seu irmão que aos 6 de idade a mãe (outra) levou a morar na Suíça, sempre foi provavelmente seu melhor amigo. Quando Lys fez 10, ele 14, a mandei passar férias com ele. Primeira viagem internacional dela desacompanhada, mesma idade da dele sozinho em visita de férias a mim em 1999 quando eu era visiting scholar na New York University em meu doutoramento.

Para a Alemanha Lys foi quando em Berlin fiz meu primeiro pós-doc em 2008 (Uidá também passou Natal e virada de Ano Novo conosco). Daí viajamos de trem a Paris, pegamos avião a Londres e fomos de trem a uma cidade ao sul na qual sondamos ela residir aos 14 por um ano numa high-school (a mãe temeu; desistimos).

Fui surpreendido em 2014, malas prontas para pos-doc agora em Portugal: ela, sem eu saber, obteve uma bolsa Santander de graduação para ficar seis meses no curso de comunicação/jornalismo na Universidade de Coimbra, tudo pago. Quando não estava na farra, seu pouso era Lisboa, onde fixei residência, agora com Mel, sua irmã bebê. De Lisboa Lys partia de mochila nas costas Europa afora, em esquema de hospedagem amigável pela Alemanha, Espanha, França e por aí vai.

Bombas sobre Kyiv na madrugada de quinta, 24/02, enquanto foge Lys manda a mensagem:

“- Eu ia pra Suíça sábado. Tava com as passagens. Estava com Covid na época.”

¨-Agora embaixada brasileira; aeroporto…”, eu sugiro. “Vai logo, Lys: não é uma brincadeirinha e eu já li muito sobre a ferocidade de uma guerra”.

“-Aeroporto já foi bombardeado. Ligo pro embaixador e ele não está atendendo”.

“- Converse com Roman e saiam logo!!!”

“-A gente já saiu de casa”.

“-Lys, tem de tentar entrar na embaixada do Brasil urgente”.

“- Tenho o número pessoal do embaixador. Liguei, mandei mensagem”.

“- Já entrou na embaixada do Brasil, agora”, pergunto impaciente.

“- Estamos indo pra lá”, responde Lys.

“- Tem de tentar entrar o quanto antes, com Roman, se ele aceita (…) Sai daí logo sem vacilo porque a tendência é piorar”.

“-Por favor, fala com a minha mãe. Quando eu chegar na embaixada eu ligo pra ela”.

“-Sei que a decisão pra Roman é superdifícil por causa dos pais. Me confirme quando entrar na embaixada do Brasil.”

“-Falou com a minha mãe? Só escreve. Não precisa ligar”.

“-Falei com sua mãe”.

“-Pai…”

Neste momento, Lys demorou alguns instante para continuar. Imaginei o que estava se passando tanto pela cabeça da minha filha quanto em relação aos bombardeios e o clima de terror em Kyiv naquele momento do início da manhã na cidade agredida pelos foguetes russos. Pensei em ser econômico nas palavras. Ela então prosseguiu:

“-Você me ama?”

“-Claro!”

“-Eu também, pai”

Naquele rápido instante engoli as lágrimas: não podia deixar-me levar pela emoção.

“- Agora vai logo pra embaixada”, escrevi como se em condições de dar ordens.

“-Tamo indo”.

“- Por que demora de chegar na embaixada?”

“-Pq a gente mora longe”.

Passaram-se doze minutos. Então Lys compartilhou comigo a mensagem oficial da Embaixada do Brasil orientando “os brasileiros a seguir as instruções das autoridades” bla, bla, bla… Fiquem em casa”

“-Olha isso”, Lys disse-me. “Vou ignorar e seguir”.

“- Siga e quando chegar lá escale a porta/muro/janela e entre com Roman.

Printou e enviou para mim a mensagem enviada ao embaixador, na qual identificava-se e informa estar indo para a embaixada. “Embaixador, meu bairro foi um dos que sofreu bombardeio. Acordamos com as bombas e já estamos a caminho da embaixada”. O embaixador foi lacônico: “Fique em casa e siga as recomendações das autoridades”.

Ante isso, na sequência escrevi a Lys: “Qual o número do embaixador?”

Mandei mensagem ao embaixador brasileiro na Ucrânia, Norton Mello Rapesta, situando a situação e pontuando: “A embaixada tem um plano para ajudar brasileiros como ela sair imediatamente? Aguardo vossas ponderadas considerações sobre: 1) acolhimento dela (Lys) em nossa representação em Kyiv; 2) ajuda e cobertura da embaixada para com segurança deixar imediatamente a Ucrânia”.

Vinte minutos depois o embaixador, imagino no meio do tiroteio de todas as partes, respondeu em mensagem de áudio que publiquei em vídeo no canal youtube/ZeDeNoca .

Lys destacou e reenviou para mim um trecho da mensagem oficial da embaixada no qual se lê: “Pede-se aos brasileiros que não se dirijam para a embaixada. Orientações serão transmitidas ao longo do dia”.

Respondi sobre o trecho: ” ´Pede-se aos brasileiros que´… Contudo penso que o melhor a se fazer é desconsiderar esse ´pedido´e entrar na embaixada e se abrigar lá dentro”.

“-Sim”, Lys replicou a caminho. Passou quase meia hora sem contato, Então ela escreveu-me:

“-Embaixada fechada com portão de ferro”.

“-Dá para pular os portões”, disse eu.

Alguns minutos a seguir ela escreve:

“-Cheguei. Abriram a porta pra gente”.

Eu, a mais de 7.500km distante, repliquei:

“-Tente não sair daí enquanto não for seguro. As próximas horas e dias serão difíceis até tudo ficar claro. Não saia daí de dentro de jeito nenhum, nem por brincadeira. Beba bastante água, veja o que tem para se alimentar aí dentro. Peça uma conversa com o embaixador e recuse sair se não tiver como se abrigar com segurança”.

No final de semana de toque de recolher em Kyiv ela foi a única brasileira, com o marido e seu gato, a abrigar-se no prédio da embaixada brasileira – além de um segurança e o conselheiro André Tenório Mourão

28 de fevereiro, segunda-feira, a embaixada teve de ser evacuada, ante a iminência do cerco a Kyiv. Lys teria de pegar um trem, tentar entrar na Polônia.

De Zürich, onde mora e trabalha em multinacional do setor de comunicação estratégica em internet, ganhando três vezes mais que seu pai PhD. no Brasil, Uidá, que é também produtor musical de grandes plateias (tem um nome artístico que não vou entregar aqui), enviou-me mensagem.

Estava deslocando-se naquele instante ao aeroporto para um voo rumo a Varsóvia, a fim de encontrar a irmã e trazê-la ao seu apartamento para esfriar a cabeça. Já tínhamos tentado antes.

Uidá na noite de 2/03 janta com a irmã, salva da guerra, em restaurante de Warsaw

Reservou hotel para os dois “e para o gato dela” na capital polonesa. “Já fiz as compras para quando ela chegar”, Uidá escreveu-me na terça. Eu recomendei: Lys está exausta, estressada, com medo – era o que minha filha demonstrava nos sete dias em que vivenciou o terror e as consequências do conflito.

Quando seu trem saiu de Kyiv, escreveu-me, certamente pensando nos sonhos adiados e em Roman: “[O trem] Saiu. E meu coração fica”. Uma jornada de mais 36 horas inseguras a aguardava pela frente, até sair do palco da guerra.

No final da tarde de 2/03/22, os queridos irmãos estavam outra vez juntos, abraçados na estação de trem de Warsaw, Varsóvia.

Mudar e melhorar o mundo começa com o que fazemos antes dentro de nós e de nossa casa. Leonino, quando sou pai sou por inteiro.

Uma fera por minhas crias – inclusive contra as fêmeas que as pariu. Não há ninguém nem nada que faça-me desviar do instinto paterno pelo qual já perdi amores.