
A amiga estadunidense de duas décadas que cedeu sua casa em região nobre do Brooklyn, Cobble Hill, para nos abrigar – Mel, a quem conhece e chama de afilhada, e seus pais -, passou treze dias entre Málaga e Barcelona, na Espanha. Deixou-me a incumbência de cuidar, e cuidar bem – ressaltou -, de seus animais domésticos de estimação, que trata como gente. Sua já anciã cadela Petúnia e, inteligente, sapeca e manhosa, sua gata Qiyoko, uma pré-adolescente. Veganos, como a dona.
Por direito recentemente concedido pelos governos de Espanha e Portugal, Joanie foi reivindicar cidadania espanhola, vez judia com sangue de ancestrais sefardim. Judeus foram perseguidos, mortos e expulsos da península ibérica pela Inquisição hispano-lusitana, a partir do século XV. Seus descendentes agora têm direito ao benefício de tornaram-se cidadãos europeus etc.
Descendentes de escravizados africanos sob os impérios portugueses e espanhóis continuaremos catando coquinho, sem o reconhcimento dessa reparação histórica.
Voltou encantada com a genialidade de Gaudí, arquiteto que projetou a Catedral da Sagrada Família na capital catalã. De chegada presenteou-me com um caderninho de notas: capa e contracapa reproduzindo obras de Gaudí (1852-1926). Passados cinco dias de seu retorno, essa manhã deu-me um cartão postal com o retrato do arquiteto, por trás a sombra de sua magna obra em Barcelona.
Por ela nem precisaríamos enfrentar as dificuldades e exigências de alugar um imóvel particular, a preço exorbitante, depois que mãe e filha venham juntar-se a mim para estudos até julho do ano que vem. Restaríamos em sua bela e aconchegante casa, em excelente e segura vizinhança, mobiliada, dois sanitários, em quarto só nosso, contribuindo com uma mixaria comparativamente. Estamos vendo isso. Pois o humor das pessoas, de um lado e de outro, muda.
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Wole Soyinka, de Abeokuta, Nigéria, primeiro escritor negro laureado com o Nobel de Literatura em 1986, é capa do Book Review, caderno dominical de resenha de livros do The New York Times, a propósito do lançamento de seu novo romance, Chronicles From the Land of the Happiest People on Earth (Crônica do Lugar do Povo Mais Feliz do Planeta). Título irônico.
O autor da resenha, intitulada “Alma de uma nação”(“Soul of a nation“), Juan Gabriel Vásquez, informa ser o primeiro romance em 48 anos e apenas o terceiro na longa carreira do escritor. Aos 87 anos de idade, Soyinka construiu uma sátira da entrópica situação política da Nigéria.

O enredo gira em torno de um empreendimento online que vende partes de corpos humanos para uso privado em rituais, coisa em voga não apenas na Nigéria, mas com destaque aí. “Como frequentemente acontece na sátira, gênero literário cuja premissa guarda proximidade com fatos verdadeiros”, Soyinka constrói em sua ficção uma narrativa tomada da crença supersticiosa de que órgãos humanos têm propriedades mágicas, levando ao sucesso nos negócios e ao poder político, algo bastante conhecido em rituais de assassinatos na Nigéria.
“Quem comanda essa macabra indústria de carne humana?”, pergunta-se. Soyinka examina relações de poder e dinheiro, além do estado mental que permite que esse tipo de violência ainda ocorra. Mas o romance é mais que isso – diz o NYT Book Review -, já que as guerras de interesse de grupos organizados, no governo ou fora dele, como Boko Haram, estão presentes. Além das iniciativas de socorro humanitário de alguns.
O resenhista ressalta: Soyinka optou pela sátira para tratar de assuntos tão sérios e delicados como um meio através do qual pode explorar a encruzilhada entre a corrupção, o fanatismo religioso, os ressentimentos endêmicos e o legado de divisão resultante do colonialismo europeu na África. Afinal, o humor continua um bom mecanismo de defesa.
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Brasileiros há dois anos estão no topo dos povos que, vindos do sul das fronteiras, tentam ingressar nos Estados Unidos de forma ilegal, sem visto, correndo todo tipo de risco da empreitada. Matéria da BBC News Brasil estimou em torno de 45 mil, muitas crianças inclusive, tentando entrar pelo México no último ano.
O desencanto com a situação do país sob Jair Bolsonaro, altas taxas de desemprego e criminalidade, a impunidade conivente do aparato estadual investigatório e judicial, tudo isso faz com que pessoas que podem se desesperem e se arrisquem até à morte.
A Polícia Federal prendeu no Paraguai um empresário brasileiro, que atua a partir de Belo Horizonte, Minas, o qual seria um dos grandes agenciadores. Ele teria contatos dentro dos Estados Unidos e parcerias com “coiotes” mexicanos – os sujeitos encarregados da logística nas fronteiras -, cobrando até US$ 25 mil (R$ 125.000,00) por cabeça.
No momento em que você lê essas mal-traçadas, na sua zona de conforto, milhares de pessoas estão jogando com a sorte nos subterrâneos, na mão de criminosos obviamente sem escrúpulos. A Border Patrol (Patrulha de Fronteira), munida com seus aparatos tecnológicos de vigilância, cavalos e cães, não está ali de brincadeira do outro lado.
Os que conseguem ultrapassar rios, túneis escavados que os levam aos desertos do sul dos Estados Unidos (Arizona, Texas, Novo Mexico), creem-se ter uma chance. Se presos, vão para depósitos locais de imigrantes ilegais, à espera de decisão judicial a seu favor ou pela extradição. O processo pode ser rápido ou levar anos.
Todos os presidentes, Democratas como Obama e Biden ou Republicanos como Trump, são autorizados a agir. E agem. Milhares de brasileiros são deportados a cada mês em aviões cujo custo do trajeto é pago com dinheiro que sai do Tesouro.
Bote na cabeça: não vale a pena nessas condições. O “sonho americano” hoje em dia é falácia até para milhões de cidadãos americanos. Sei que pode soar hipócrita porque, nesse caso, com família e tudo, temos o privilégio de até escolher onde e com quem morar.
Em Nova York. Onde estudar, sentar para sorver um bom café, em cenário de filmes e séries em streaming que enganam muitos incautos. A pobreza, a miséria, o submundo aqui são superlativos. E o inverno, de matar baiano.
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Não-residente estrangeiro que busca alugar por conta própria em seu nome um apartamento em Manhattan ou no Brooklyn, em regiões menos inseguras da cidade, tem de ter muito cuidado com golpistas, aqui chamados de scammers.
São vigaristas profissionais, masculinos ou femininos, que anunciam em sites diversos da Internet, com oportunidades de moradia e preços ultraconvidativos.
Atraído, por e-mail o desavisado entra em contato. Depois vem a primeira resposta, confirmando a oferta, em geral com argumento de que é uma propriedade particular à qual se quer alugar a alguém confiável “que cuide do imóvel como se fosse seu”. Que está sendo alugado porque nos próximos dias ele(a) está sendo transferido(a) para Londres ou para Madrid pela empresa em que trabalha.
Fotos do interior confortável e mesmo do(a) suposto(a) dono(a), com esposo(a) e crianças são enviadas para o interessado. Até foto da página de identificação do passaporte do(a) referido(a) é enviada, “para que fique tudo bem garantido”.

Se o interessado pergunta quando visitar o imóvel a resposta leva dois, três dias. Até que o “proprietário” informa que “já está no exterior”, não poderá mostrar pessoalmente, mas levará adiante a transação, utilizando de terceiro.
Propõe: pode ser via Airbnb? Com um detalhe: para que o terceiro entregue as chaves você tem de adiantar um depósito com os valores do depósito em segurança, mais o do primeiro e do último mês de aluguel (a depender, pela oferta, entre 3.500 a 4.500 dólares).
Mas esse adiantamento, antes de receber as chaves, tem de ser feito via sites de transferência de valores. Se você observa que as transações da Airbnb somente são asseguradas se feitas diretamente no website da Airbnb, o(a) ofertante diz tratar-se de um contrato diferenciado.
A troca de mensagens é interrompida quando você comunica ter visitado o endereço dado pelo(a) suposto(a) sujeito(a). E que, indagando ou ao porteiro ou algum morador foi informado que, de jeito nenhum, o imóvel posto em locação não está para alugar e pertence a outro proprietário.
Uma funcionária do consulado brasileiro em Nova York garante: muita gente iludida, pressionado por necessidade de morar, que pensa somente no Brasil existir dessas coisas, já perdeu grana com esses esquemas criminosos nessa cidade.
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(*) “Diário da Corte” era como o jornalista Paulo Francis, residente em Nova York desde o endurecimento da ditadura militar no Brasil até sua morte em 1996, nomeava uma seção de sua coluna publicada semanalmente nos anos 80/90 nos principais jornais impressos brasileiros, na qual dava notas sobre curiosidades e fatos da “Big Apple”. Tentarei o mesmo aqui.