Imagem de “economia criativa” na “maior festa do planeta”

CARNAVAL E OUTRA VEZ, como nas últimas duas décadas e meia – com a industrialização dessa festa popular -, quem tem olhos e sensibilidade viu.

Foi a repetição do espetáculo daquilo que Maria de Azevedo Brandão uma vez classificou de uma das faces da propalada “baianidade”: o lado perverso de convenções naturalizadas no cotidiano das relações sociais dessa porção territorial denominada de recôncavo, Salvador incluso.

Região onde ainda hoje predominam fortes resquícios das tradições escravocratas.

Não apenas os chamados “cordeiros”, atividade em vias de sindicalização por espertalhões politiqueiros, são a imagem gritante de uma sociedade zelosa na manutenção de hábitos medievais.

Os farrapos humanos pululam em todas as esquinas e desvãos da festa, para o deleite de uma ordem-de-coisas que determina o lugar do branco e do negro, do rico e do pobre, do turista e do nativo.

A “terra da alegria” e de “todos nós” dos slogans governamentais convive, de forma conveniente, pari pasu com o chicote (real ou mental) no lombo da maioria.

“É Carnaval, cidade: acorda pra ver” – diz a música

A afirmação, por vezes orgulhosa, de que “a África é aqui”, registra também o que há de mais horroroso no olhar colonialista do passado: a inferiorização e a brutalização do colono, do serviçal, do escravo.

De fato, no circuito da folia, enquanto brilham as estrelas nominadas pela indústria cultural, com seu aparato midiático composto por profissionais que vão de áreas tão distintas como o marketing, jornalismo, “promoters” e grupos de segurança, de um lado das cordas e lá em cima nos camarotes tudo é alegria.

O que há de lacônico, lúgubre, nefasto, transita do lado de fora.

O Carnaval soteropolitano é a síntese dos nossos contrastes. É exemplo da clássica microfísica de poder foucaultina, na qual quem pode pisa no que está abaixo ou ao lado.

Tais contrastes estão presentes antes e depois do interregno da festa. No regime servil há como se um acordo tácito entre o algoz e a suposta vítima, que aceita servir, às vezes abrindo os dentes (banguela?).

O gado humano, pisoteado nas cancelas dos ferry-boats, estádios de futebol, teatros, festas populares, mesmo que pagando ingresso, tudo aceita do nhô-nhô.

Reprodução de vídeo de foliã atacada por registrar violência policial no Carnaval deste 2018 [clique aqui pra ler]

Assim, enquanto os capitalistas da hotelria, da indústria fonográfica, do comércio de drogas e do turismo sexual vêem seu saldo bancário engordar, os vendedores ambulantes, famílias inteiras à cata das sobras dos foliões, serão citados pelas estatísticas da propaganda oficial como partícipes do saldo econômico gerado nesses dias.

Números diversos, à potência de milhões, serão trazidos em linguagem de economês para asseverar o êxito do evento, que tudo pára e ao mesmo tempo mobiliza.

Empresários, intelectualóides da cultura e políticos contabilizarão como lucro o que, em realidade, é a pura indigência de muitos.
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  • Artigo publicado originalmente em A Tarde de 24 de fevereiro de 2009.