A VIDA É FEITA também de coincidências.
Se há alguém responsável por eu ter largado a redação de jornais e a sedução financeira de grande agência de publicidade na Bahia, ele acaba de morrer aos 83 anos de idade em Rhode Island, nordeste dos Estados Unidos da América (U.S.).
Já escrevi aqui e alhures: devo a Thomas Skidmore ter me aventurado na carreira acadêmica de professor e pesquisador universitário. Sei que acumulo adversários e invejosos vários desde então.
Recomendo que maldigam aquele gringo, autor de estudos clássicos sobre história, política e relações sócio-raciais brasileiras, a exemplo de Preto no Branco, de 1976, e de Brasil: de Getúlio a Castello (1930-64), de 1967. Acesse o acervo aqui.
Prestava serviço como repórter do jornal A Tarde em 1990. Skidmore estava em Salvador para oferecer uma conferência no salão nobre da Reitoria da Universidade Federal da Bahia. O chefe de reportagem, Chico Ribeiro Neto (ou Eliezer Varjão), me escalou para cobrir o evento.
Antes de sair da redação, pedi ao arquivista do jornal tudo o que havia sobre o conferencista. Naquele tempo não existia o Google. Mergulhei na leitura do material. E entre o prédio do jornal na Avenida Tancredo Neves e a sede da Reitoria nas proximidades do Campo Grande já tinha razoavelmente um perfil da minha fonte.
A pauta era sobre a conferência, que eu acompanhei. Mas resolvi, por conta própria, entrevistar o conferencista em particular, numa outra sala, depois dos aplausos que sucederam sua brilhante exposição. Somente nós dois.
Terminada a entrevista Skidmore, dizendo-se surpreendido pelas perguntas e contestações que lhe fiz, indagou, de chofre, por que eu não deixava o jornal para aprofundar os estudos. Era um convite? No que dependesse dele…
Ano seguinte eu já estava residindo em São Paulo, selecionado para a pós-graduação na USP. Em 1994, com bolsa Fulbright, primeira viagem de intercâmbio acadêmico por três meses para palestras e contatos em universidades e centros de estudos da costa leste dos U.S.
Resolvi ter como endereço de referência um apartamento da Columbia University, em Nova York, dividido por três estudantes de pós-graduação, na Upper West Side Broadway a poucas quadras do campus. Ele consentiu, mas tinha outros planos.
Naquela viagem, Thomas Skidmore atuou como um cicerone. Ele queria que me instalasse em Providence. É a capital do Estado. Ele, sua mulher Felicity, inglesa publisher de importante empresa editorial, e seu gato moravam numa casa nas proximidades da Brown University.
Nomeou dois assistentes para estar comigo na minha estadia na cidade, ambos então seus alunos e hoje importantes seguidores do seu legado de brasilianista: Jerry Dávila e Tia Malkin.
Convidei Dávila, quatro anos depois dessa primeira viagem, a dividir comigo um ping-pong com Skidmore. Tornamo-nos, assim, co-autores de um texto incluido num tomo da coletânea em livro das 100 Melhores Entrevistas publicadas pelo suplemento “Mais!”, do jornal Folha de S. Paulo, de título Artes do Conhecimento(2003).
Ao chegar da primeira vez em Providence, saindo da estação de ônibus interestaduais dos arredores da sede do New York Times em Manhattan, a pedido de Skidmore Dávila já me aguardava para hospedar-me no sótão de uma casa do século XVIII feita em madeira onde residia com seu terrier.
Skidmore me aguardava para o jantar (dinner), que pela tradição estadunidense começa logo depois das 17h. Dávila levou-me até a casa do brasilianista, onde Tia já se encontrava ou chegou pouco depois.
Bebida à vontade, embora do que mais recorde seja a torta de espinafre feita por Felicity e as tiradas sarcásticas de Skidmore sobre o Brasil. Particularmente, suas críticas ao formalismo de um Pedro Calmon – historiador afamado, irmão dileto do diretor de redação de A Tarde, Jorge Calmon.
Como minha agenda em Brown era de uma semana, inclusive para lecture no centro de estudos coordenado por Anani Dzidzienyo, tive a ideia de retribuir o jantar a Skidmore, oferecendo a ele e outros convidados a seu gosto o que pensei ser um típico prato da culinária afrobaiana: xinxim de galinha.
Providence tem um bairro antigo de portugueses e caboverdianos, no qual se encontram algumas bibocas que vendem azeite de dendê e camarão seco (mas não defumado). Num supermercado comprei um frango e o que pensei ser uma lata de leite de côco. Como meu inglês era de carroceiro, se li no rótulo coconut, era suficiente.
Os convidados foram chegando ao sótão de Dávila, o principal deles, a quem eu queria impressionar e agradecer, Thomas Skidmore, alegre e sorridente como sempre. Depois dos acepipes, o prato principal. Que preparei e servi sem experimentar antecipadamente. Foi uma festa de aprovação!

Xinxim de galinha: clique e leia uma receita
Na minha vez de comer, por último, na primeira garfada, distinguindo o azeite de dendê e o camarão seco moído, senti um sabor adocicado como mel. É que em vez de leite de côco o coconut da lata era doce de leite de côco!
Contudo, como os gringos não notaram a diferença, fingi que era assim mesmo. Desde então, todas as vezes que Skidmore visitava o Brasil, se passasse por São Paulo, fazia questão de me encontrar.
Meus colegas da redação do Jornal da USP, onde fui repórter nos idos de 1991, e meus professores na ECA-USP ficavam admirados e surpresos quando viam Skidmore entrar na sala procurando por mim. Às vezes, sentava e esperava eu terminar minhas tarefas para sairmos juntos.
Já era um scholar respeitadíssimo, convidado para temporadas no IEA (Instituto de Estudos Avançados da USP) e na sede paulista da Fundação Carlos Chagas. Suas conferências eram límpidas, informativas, objetivas e bem-humoradas. Sem qualquer afetação.
Hospedava-se sempre num hotel nas imediações da Avenida São Luís com a Ipiranga, centro de São Paulo.
Foi lá que fui buscá-lo para sua entrevista ao “Jô Soares 11 e Meia”, do SBT (me atrasei e o carro da emissora não me esperou). Dali, também, uma noite vimos caminhando até o apartamento que eu alugava na Rua Dr. Vila Nova, em prédio ao lado do SESC Consolação.
Leonino como este escrevinhador, naquele 22 de julho, data do seu aniversário, pude enfim oferecer a Skidmore um jantar mais decente e intimista, para apenas cinco.
Skidmore escreveria em 2005 o prefácio do livro resultante do doutorado que obtive na USP. No texto é só generosidade, como demonstrou sempre a esse aprendiz.
Bonito,Fernando,mas como você explica q o biógrafo de MS e o admirador de Sk apóie Temer? Não entendo, mas espero q tenha mudado de ideia quanto a esse governo ilegitimo, machista, racista, submisso aos ricos de dentro e de fora do Pais e contra os pobres. Abs Ligia
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