Eleito com mais de 90 mil votos de frente novo prefeito de Salvador, aos 33 anos de idade Antônio Carlos Magalhães Neto tem, por toda a vida, de carregar o espectro do seu avô, morto aos 79 anos em 2007?

Parece que sim. E a construção de sua imagem feita por seus adversários políticos, antes e durante o processo eleitoral, será difícil de ser desconstruída. Ele está condenado, ao que parece, desde o nascer. Pode ser um cara porreta e bem-intencionado, como se aparentam os políticos em geral. Mas é neto de quem foi. Logo, sua eleição, escutamos e lemos por toda a parte, “traz de volta o fantasma de ACM”.

Ocorre, como ensina Shakespeare em Hamlet, nem todos os fantasmas são de todo uns filhos da puta. E, no caso de ACM, justiça deve lhe ser feita. Como certa vez publicou Zé de Noca, um colaborador do alternativo Província da Bahia, ele foi “um retrógrado revolucionário” da política baiana.

Em outros termos e outras mais consubstanciosas palavras, é a conclusão a que também chega o cientista político autor de “Tradição, Autocracia e Carisma: A Política de Antônio Carlos Magalhães na Modernização da Bahia,1954 – 1974”, livro de 2006. O autor tem credenciais insuspeitas, vez que desses protocomunistas conciliatórios de velha cepa, do “campo de esquerda”, palpiteiro tido como fonte de jornais e TVs para análises pouco rigorosas de conjunturas.

Sabemos que para debatedores de mentalidade secundarista ou de torcidas, não é fácil um papo adulto quando se está em jogo interesses de poder, legítimos ou não. Reconhecer o papel modernizador de ACM nas velhas, arcaicas e coloniais estruturas de mando no Estado que por mais de três séculos – do XVI à primeira metade do XVIII – foi dos mais importantes, se não o maior, do Brasil – a essa gente equivale a perder o eixo das certezas dogmáticas de suas cartilhas (ou seriam bíblias?).

O consenso, fruto de raciocínios os mais rasos e simplistas, típicos do jardim da infância, é que ACM foi o responsável por tudo o de perverso, mau, atraso, de ruim, de ditatorial, de miséria que existe em nossa “maravilhosa” terra. É o que professores semi-analfabetos ou preguiçosos massacram em todas as escolas da Bahia, públicas ou privadas, sem exceção, nas cabecinhas de nossos pimpolhos, desde que esses começam a frequentá-las, até aos cursos de pós-graduação mais empelotados das universidades.

DESONESTIDADE PUERIL

Não é isso que está em autores que se deram à tarefa, nas últimas oito décadas, de estudar o que Otávio Mangabeira (1986-1960), ex-governador do Estado (1947-51) rotulou de “O enigma baiano”. Onde encontrar as razões e origens das desigualdades sociais, da perda de importância no cenário nacional, e do atraso da Bahia no decorrer de todo o século XX e mesmo até hoje? Da década de 1980 para cá, os intelectualmente desonestos apontam o dedo em direção a Antônio Carlos Magalhães: somos essa porcaria por exclusiva culpa do carlismo.

Nada mais pueril. Quem se der o trabalho de ler “Bahia, Século XIX, uma Província no Império”, de Kátia de Queirós Mattoso (1931-2011), encontrará respostas menos caricatas à indagação acima. A mais significativa de todas: a Bahia chegou a esse estado deplorável de coisas por conta não de um sujeito apenas. Mas devido à mentalidade conservadora, arcaica e escravocrata de suas elites de mando. Não importa se de direita, de “esquerda”, de centro.

É essa mentalidade que nos faz, alguns, senhores ou supostos senhores, de um lado. E a todos serviçais, de outro. Que se aprazem em servir, distribuindo cocadas, fitinhas de “santos” e sorrisos. Que desejam continuar servindo, por servir. É menos doloroso. “Me ajeite que eu te ajeito!”, esse é o mote, que aqui tomo de empréstimo de uma ex-candidata à vereança, dos acomodados na alma. Dificilmente há no Brasil sociedade de mentalidade tão fechada, tão barroca, tão avessa ao novo e ao desafiador. Esta, uma das marcas da chamada baianidade, que atrai os turistas d’alem mar.

OLIGARQUIA SEM OLIGARCA?

A elite de mando baiana foi esquadrinhada pelo americano-coreano Eul-Soo Pang, no seu “Coronelismo e Oligarquias”, de 1979. O que se sobressai de sua pesquisa são os modos e a mecânica de controle de poder na Bahia, do período colonial aos primórdios da tardia industrialização com a chegada da Petrobras por aqui na década de 1950. As oligarquias coronelísticas sempre prevaleceram na história baiana. E tentar acabar com isso, depois do golpe getulista do Estado Novo, não foi tarefa fácil nem mesmo para o habilidoso intervencionista Juracy Magalhães (1905-2001).

ACM foi a figura política que mais contribuiu para desmantelar a velha ordem oligárquica que vinha desde a era da Colônia. Peitou os resquícios das oligarquias familiocráticas que grassavam por todo o território baiano, há séculos por elas controlado. Desalojou antigos poderosos, que o descrevem como um crápula traidor. Embaralhou as cartas do jogo oligárquico. Instalou a incerteza no lugar tranquilo em que vicejavam os senhores de engenho de nomes lustrados e pomposos. Portanto, atraiu contra si a fúria dos vencidos.

Montou a sua estratégia convocando gente nova ou ressentida. E numa invejável e competente engenharia política madura, soube montar o seu próprio grupo – coeso até às vésperas de sua morte, ouso dizer, prematura. Não se pode afirmar que criou a sua oligarquia própria, pois oligarca não foi quem não deixou uma seita que o cultue.

Beneficiário da ditadura militar que ajudou a implantar (mas o mesmo pode ser dito de gente, de famílias e de instituições admiradas por seus opositores), ACM utilizou  dos cargos ocupados para tentar recolocar a Bahia como Estado competitivo, não apenas no Nordeste mas no país. No contexto do militarismo, deve ter feito coisas do arco da velha – e para saber mais aguardamos a biografia escrita pelo jornalista Fernando Morais, de quem era amigo por afinidades até com Fidel Castro, dono de Cuba. Mas também peitou generais poderosos, e saiu-se vitorioso.

Foi para o centro do poder político, rompeu na hora certa com o regime militar apoiando Tancredo Neves (foi quando a oposição passou a tratá-lo de “Toninho Ternura”), ajudou no congresso estudantil de reestruturação da UNE, estimulou o Centro Industrial de Aratu, brigou e trouxe o Pólo Petroquímico para Camaçari (Wagner existiria sem isso?), criou as universidades públicas estaduais, todas elas, interiorizando o ensino superior por décadas restrito à capital e à UFBA.

Se soube usar o poder para si mesmo, e com ele enriquecer, não está sozinho nessa seara – alguns o chamariam de burro se não o fizesse. Aí está o sindicalista Jaques Wagner, agora governador, adquirindo imóveis milionários com a ajuda de empréstimos “do seu irmão”. Ou João Henrique, ou Lula e seu filho, ou José Dirceu, ou o bem-assalariado presidente da Agência Nacional do Petróleo. Ou os sindicalistas dos bancários, dos comerciários, dos professores, dos condutores de veículos – esses, mais longevos no poder que o próprio ACM que condenam.

A complexidade de um homem que viveu de forma tão intensa e crucial os acontecimentos políticos dos últimos 60 anos não cabe em enquadramentos caricatos de papo de botequim. Santo não foi de forma alguma. Mesmo porque, como diz Maquiavel, esse não é o mundo dos santos. O papel e a importância de ACM para a Bahia, fonte da inveja enrustida dos que – aqui ou alhures – sequer o ensombreiam, merecem análises fora do redemoinho das paixões comezinhas dos seus áulicos.