Luiza Bairros, socióloga gaúcha que adotou a Bahia por domicílio desde o início dos anos ’80 para tornar-se intelectual de primeira linha e militante contra o racismo, é alvo de homenagem ímpar dos Correios e Telégrafos.
A esta baiana por opção está sendo dedicado um selo postal, oito anos depois de sua morte prematura, por câncer – era fumante inveterada – em Porto Alegre, aos 63 anos.

Ponto para Anielle Franco, do Ministério da Igualdade Racial do governo Lula, proponente da ideia. Luiza foi ministra da mesma pasta, à época denominada Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), entre 2011 e 2014 no primeiro mandato de Dilma Rousseff.
Por contraste, jamais um governo com outra coloração ideológica reconheceria uma mulher negra, ainda que da qualidade e da importância intelectual de Luiza Bairros, que não tinha posses, com um selo postal. Há uma forte componente simbólica para nós, que tanto combatemos o racismo.
Se o único defeito seu era ser petista, este escrevinhador é testemunha: jamais Luiza foi uma petista doidivanas, destituída de senso crítico.
Tinha bom humor e bom senso, acima da média. Nunca alterava a voz em qualquer confronto de ideias ou posições, mas era firme e rica em seus argumentos. Difícil vencê-la na seara do debate.
Foi das primeiras pessoas a telefonar para a casa deste escrevinhador horas depois que, em setembro de 2015, dei publicidade à sentença desfavorável de primeira instância em processo judicial por assédio moral contra a UFBA e três outros réus do qual sou o autor. Conversamos por quase meia hora, analisando as possibilidades.
Antes de ser alçada ao ministério da presidente Dilma Rousseff, Luiza exerceu o cargo de secretária de Estado na Bahia, como titular da Sepromi (Secretaria de Promoção da Igualdade), indicada por Luiz Alberto, mais conhecido por Luiz Operário (1953-2023), que ganhou uma cadeira na Câmara dos Deputados. Politicamente os dois, dentro do PT, agiam juntos.
Foi na condição de secretária do governo estadual que participou a meu lado de reunião com Fernando Barros, diretor da agência de publicidade Propeg, quando no começo de 2010 lançamos, em parceria com essa agência, a Campanha Afirme-se! pela constitucionalidade das cotas, que estava sendo questionada em ações no Supremo Tribunal Federal (STF).
No campo de produção do conhecimento Luiza Bairros trabalhou por anos no PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) e foi pesquisadora ad hoc no CRH/UFBA, sem vínculo com a instituição.
“O negro na força de trabalho: Bahia, 1950/1980”, publicado na Revista Humanidades, da Universidade de Brasília (UnB, nº 17, 1988), e “Desemprego: o negro é o primeiro que sobra”, publicado na Revista Força de Trabalho e Emprego em Salvador, em 1992, são dois de seus artigos resultantes de suas pesquisas no CRH. Utilizo-os como referências na dissertação de mestrado, “Imprensa e racismo no Brasil”, que defendi na USP em 1995.

Em meados dos anos ’90 foi uma das primeiras contempladas num programa de mobilidade acadêmica para uma universidade do sul dos Estados Unidos, bancado pelo Ford Foundation, mas de lá regressou sem concluir o mestrado, que abandonou.
Para quem conviveu pessoalmente e debateu com Luiza Bairros, ante sua substância e coerência discursivas, o impulso é o de enfiar a cara no buraco, por pudor e vergonha, com o nível do debate nos dias correntes. Quando hoje a gente vê os autodenominados “ativistas”, seja os que se dizem “intelectuais”, ou “influencers” ou “coachs“, em piruetas retóricas, ou fazendo o diabo para obter seguidores, dá vontade de chorar.
Luiza Bairros faz falta! De agora em diante, vá a uma agência física dos Correios postar cartas para amigas e amigos daqui e d’alhures, apenas para utilizar o selo com o rosto sorridente dessa personalidade única.
CENA INUSITADA
Luiza Bairros foi uma das heroínas que, na Bahia, fundaram o MNU (Movimento Negro Unificado) no comecinho da década de 1980. Uma de suas mais íntimas parceiras de empreitada e confidência à época foi Maria do Amparo, a quem na ocasião o autor dessas mal-traçadas cortejava.
Por conta de Amparo, a primeira vez que Luiza deparou-se comigo foi de forma inusitada. No movimento de defesa dos bairros e de favelas este escrevinhador estava embrenhado. Mas, em termos de consciência da luta contra o racismo, era um alienado, não fazendo conexão entre os fatos.
Naqueles dias Amparo acabara de mudar-se da casa dos parentes que a criara no largo da Vitória para um apartamento na rua do Sodré, no bairro central Dois de Julho. Me cedera uma cópia das chaves, embora eu continuasse morando agregado à família na favela do Calabar.
Um final de tarde fui ao apartamento aguardar por seu regresso do trabalho como funcionária da Fundação Cultural do Estado, com sede próxima. Enquanto esperava, resolvi deitar na sala, estendido numa esteira de vime. Como fazia muito calor, fiquei pelado, totalmente nu, de bunda pra cima, ventilador ventilando dos pés às costas.
Cara enfiada no travesseiro, assim, como vim ao mundo, peguei no sono. Fui desperto com duas vozes femininas, e mexer do trinco na fechadura do lado de fora, porta já se abrindo. Não deu tempo correr. Permaneci imóvel como se ainda nos braços de Morfeu. Uma voz era a de Amparo, que foi ao quarto e retornou cobrindo-me com um lençol. A outra voz, soube alguns quinze minutos depois que a visita retirou-se, era a de Luiza Bairros.
Luiza Bairros, pessoa generosa com os amigos, alguns dos quais adotou, sustentando-os em dificuldades. Discretíssima em suas relações afetivas. De minha parte, nunca perguntei, nada sei.
A não ser que, ainda por aqueles áureos tempos de combates, ela e o radialista Jônatas Conceição da Silva (1954-2009), poeta, editor do Jornal do MNU, diretor do bloco afro Ilê Aiyê, dividiram o mesmo teto por uma temporada não muito longa. Duas pessoas geniais juntas: era namoro ou amizade?