“Admito isso: a indústria farmacêutica não é filantrópica. Mas ela gasta duas vezes mais dinheiro com marketing de promoção das drogas [que produzem] do que em pesquisa e desenvolvimento [de medicamentos para cura]”.

Essa declaração é de John le Carré, o consistente e aclamado romancista britânico morto aos 88 anos em dezembro passado, em entrevista ao site noticioso swissinfo.ch, publicada em março de 2001.

Hoje, passados 20 anos, ante os efeitos materiais e psíquicos da pandemia da Covid-19, o modus operandi das companhias farmacêuticas globais na corrida pela produção do lucrativo negócio das vacinas anti-Covid confirma a denúncia de le Carré.

Carga da CoronaVac, da Sinovac, chega ao Aeroporto Internacional de São Paulo a 19/11/2020 ( REUTERS/Amanda Perobelli/ reprodução Agência Brasil)

Estados nacionais, em qualquer parte do planeta, estão na dependência de um punhado de empresas jamais caridosas, dispostas a impor sua política comercial de venda de insumos e drogas acabadas à revelia da autonomia e soberania de todos esses Estados.

Um ano depois da confirmação da pandemia, o que assistimos para além das altas taxas de mortes, contaminações e estrangulamento dos sistemas de saúde por toda parte, é a confirmação da lógica básica que regula a política de preços no mercado: oferta e procura.

Os Estados competem entre si para serem supridos pelos imunizantes desenvolvidos em tempo recorde pelo fechado clube das farmacêuticas globais. Se quiserem ser atendidos, todos devem e têm de submeter-se, antes de mais nada, aos interesses de lucro dessa indústria.

A política de governos liberais, modernos, seja os da Europa, dos Estados Unidos, do Japão, é pressionada pelas regras de distribuição das vacinas que saem dos laboratórios no ritmo que as farmacêuticas impõem. Não importa se os contratos, o valor e o pagamento dos mesmos tenham sido firmados antecipadamente.

Em países da periferia capitalista, ainda mais se governados por negacionistas irresponsáveis como o Brasil de Jair Bolsonaro, agentes dos três poderes, com a pressão da mídia também esta interesseira, apressam-se mesmo em mudar e alterar suas leis internas – inclusive com emendas à Constituição Federal.

Agências reguladoras responsáveis pela análise e liberação ou não das drogas para uso das pessoas, a exemplo da Anvisa, são acuadas.

Ou seja, a indústria farmacêutica estrangeira exige tal e qual coisa: cumpra-se! Ou morra-se!

Em sua entrevista John le Carré, ex-membro do serviço de inteligência do Reino Unido, falava contra os subterrâneos mafiosos que movem a indústria farmacêutica global. E quanto companhias suíças e britânicas estavam envolvidas nesse negócio sujo.

No então recente livro, The Constant Gardener (2001), baseado em pesquisas e em caso real ocorrido em Kano, norte da Nigéria, le Carré retrata essa indústria como um dos motores mais insidiosos do capitalismo. O caso em Kano envolve a farmacêutica Pfizer, primeira a colocar uma vacina anti-Covid-19 no mercado.

Le Carré situa a trama no Kênia, também África, maior laboratório vivo desregulado de experimentações e testes sem controle de drogas farmacêuticas.

Desvela a seguir, depois do assassinato da mulher de um diplomata britânico sediado em Nairobi, o novelinho das ramificações criminosas globais das companhias de medicamentos.

O cineasta brasileiro Fernando Meirelles adaptou para o cinema a obra ficcional, com estreia em 2005, sob o título “O Jardineiro Fiel”.

A adaptação de 2005 de Fernando Meirelles, cineasta brasileiro, para o romance de John le Carré, titulado em Portugal “O Fiel Jardineiro”

Não de hoje dados de pesquisas independentes alertam há décadas sobre a desumanidade desse nicho mercadológico.

Que cria dependência a suas drogas consideradas lícitas, à venda em estabelecimentos autorizados pelo poder público. Não importam os efeitos colaterais adversos – como os retratados por le Carré – e as taxas de mortalidade anual.

Maiores essas taxas, apenas no mercado estadunidense, que todos os tóxicos e psicotrópicos postos na ilegalidade – portanto alvo de guerras de cartéis, polícias e milícias.

Distintamente, o cartel das farmacêuticas é inatingível. Sua imagem é dourada – daí o alto investimento em propaganda e marketing. Seu lobby junto aos líderes governamentais é forte e rentável.

Faz parcerias e acordos com universidades mundo afora, promovendo carreiras e congressos internacionais. É forte doador da Organização Mundial de Saúde (WHO).

Passa-se como benemérito, posto oligopolizar a produção em massa de drogas. Narcóticos que amenizam o sofrimento de milhões ao redor do mundo, consumidores ansiosos de seus produtos patenteados.