HOUVE UM TEMPO em que não havia qualquer distinção entre a vida ordinária, de escassez material, e a esfera do imaginário divino.
Este era sincrético. Mas as matrizes da cosmogonia indígeno-africanas galvanizavam o cotidiano das relações sociais, em geral centradas nas mulheres, como se na favela do Calabar houvesse um matriarcado…
No mundo de financialização absoluta no recôndito e no público do trato entre as pessoas e as coisas, agora aquelas divindades fugiram daqui.
Todo um panteão de divindades incorporava sem aviso nas pessoas conhecidas, seja na mesa do café, durante os afazeres domésticos ou durante as tarefas cotidianas.
Isso era mais comum quando das desavenças, dos desentendimentos dentro das casas das famílias e nas brigas de rua. O “caboclo” ou o “santo” baixava, em geral para dar conselhos e tentar apaziguar as coisas. Já tão difíceis para aquela gente.
Dona Maria de “Breque”, por exemplo. Marido, à época, não tinha, como a nossa mãe também – esta enviuvou com sete pirralhos às costas. Não havia dia em que Maria de “Breque” não manifestasse seu erê.
O erê dela era uma Crispina, brincalhona. De forma alguma metia medo nas crianças, amedrontadas com aquela profusão de entidades mágicas sempre dispostas a interferir, ou interceder, na vida dos comuns mortais.
Possuindo-os. Transformando suas feições, alterando o tom de sua voz, em advertências e rompantes geralmente – para nós, os pequeninos – ameaçadores. Crispina, como criança que é, fazia daquela senhora uma criancinha com estripulias.

Mãe Beata, sacerdotisa baiana com terreiro na Baixada Fluminense (Rio), internacionalmente respeitada
Maria de “Breque” (assim todos a conheciam, sem nunca saber-se a origem do apelido) morava defronte ao nosso casebre, daí ser íntima da vizinha viúva. E os seus filhos serem como filhos dessa – e vice-versa.
Seu lar era um cacete-armado sem portas ou janelas (apenas buracos), onde tentava abrigar sua ninhada de crianças de diferentes biótipos. Do preto mais retinto e cabelos carapinha, ao branco de cabelos alourados e lisos.
Sultão das Matas era useiro e vezeiro em nossa morada, baixando sobre a cabeça da dona da casa para indicar a resolução de qualquer problema mais difícil que aparecesse.
Adivinhava se íamos bem ou mal na escola. Surpreendentemente, repreendia-nos por algum ato reprovável que havíamos praticado e que pensávamos segredos só nossos. Depois, após um copo de água limpa, a mãe recobrava a linha do tempo.
Havia duas ou três, mas a Yalorixá (sacerdotisa) mais considerada atendia pelo nome de Mãe Ivone. Era branca, infértil, e seu marido uma espécie de príncipe azeviche.
Saído de famosa família de linhagem Ketu que, a partir do bairro Nordeste de Amaralina, até hoje influencia e comanda terreiros. Ele exercia o ofício de principal Ogã da casa. Era quem dava as ordens e organizava o terreiro.
Frequentado por gente que vinha de longe, em automóveis de luxo que paravam em frente da comunidade. Principalmente em dias de festas e batuques para orixás. Mas não havia vias de acesso de veículos, no amontoado de barracos e valas a céu aberto.
Mãe Ivone, se lembro bem, tinha aquela serenidade, aquele olhar, aquela voz mansa das pessoas sábias que entendem a miséria da vida.
Gorda, mas não obesa, acolhedora, reinava com um séquito de filhas e filhos de “santo”, que lhe baixavam o olhar, pedindo a bênção e beijando sua mão. Pouco se a via na rua.
Uma das filhas, à época com 14 anos, da viúva mencionada acima, foi a sua Dofona. Isso foi um anátema dentro de nossa casa, ao menos para este escrevinhador criança que nada entendia daquilo. Porque à Dofona, até a dona do lar deveria prestar certa reverência.
Até hoje sem nada entender, cético por opção, ainda assim levo a sério o vaticínio que no decorrer dos anos gente do ramo, de Mãe Stella de Oxossi a Mãe Beata de Yemanjá, aos intelectuais Ivan Messias a Ana Célia Silva, fazem sobre quem “manda” na minha cabeça e no meu proceder.
É Exú. O brincalhão. O fálico. Aquele que bagunça para lembrar aos humanos sua baixa estatura moral-carnal.
Mensageiro, o comunicador entre o mundo de cima, superior (o Orum) e esse mundo terreno. Fica óbvio que confunde.
O seu mister é incômodo. Até para quem é dele portador. A estreiteza da dicotomia judaico-cristã – que demoniza Exú – que o diga… Ele ri de tudo isso!
Que seria se as pessoas pudessem ter acesso a informação e desendemoniassem os Orixás! É preciso conhecer. Mas quem quer ensinar?
Texto com uma inesperada beleza, pelo seu tom confesssional de vivência humana e respeito pelas crenças ancestrais. As reminiscências pintam a antiga comunidade do Calabar com muita humanidade e um certo acento lírico.
Como acompanho há bastante tempo a sua página, através das mensagens que recebo por e-mail, ao saber que você é regido por Exu entendi o porquê toda a confusão que às vezes pinta com algumas pessoas. No fim do texto, ironicamente, você tambem sugere isso.
Que o menino reinador continue abrindo os caminhos de todos nós.
Cid Seixas
Uma crônica muito interessante. Os encantados participando do cotidiano das pessoas em tempo que as levam para uma esfera transcendental. Me lembrei daquela frase de uma música que Maria Bethânia canta com Ivete Sangalo: “quem tem santo é quem entende”.
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