De como negro ex-favelado reside no Corredor da Vitória?

Milton Santos, geógrafo que estudou o espaço e o território ocupados dizia: o lugar que você ocupa no território, onde você mora, define socialmente quem você é.

Seria dessa forma, por seu endereço, que você primeiramente é visto pelos olhos de outrem. Seja esse outrem um policial que lhe aborda, seja o recrutador do setor de Recursos Humanos das empresas.

Este é um artigo que atende à curiosidade de muitos. De como um casal negro e favelado da Bahia, Danila de Jesus et moi, ambos diplomados em jornalismo, veio morar com a filhota no cobiçado bairro Corredor da Vitória, capital.

Sem fazer despacho para orixás, sem ungir na testa “óleo sagrado” na Universal do Reino de Deus ou rituais outros. E sem, à época, abaixar a bunda aos senhores e senhoras brancos mandatários desse território que é a Bahia, Brasil.

Adianto que ter aprovada em banco uma linha de financiamento imobiliário – em torno de 60 mil dólares (R$ 300.000,00) – é de grande valia.

Este é também um artigo dirigido a quem não romantiza a favela. A quem acredita ser possível conquistar, embora a duras penas, um lugar melhor para si e para os seus. A quem tem a honrosa ambição de ser livre.

De dormir e acordar sem ser importunado, em silêncio absoluto. Ao acordar na matina apenas ouvir ao despertar os silvos de pássaros variados que vêm e vão, soltos, voando à sua janela, seja qual for a estação do ano.

É um artigo dedicado à minha caçula, para quando no futuro lhe façam as mesmas perguntas. A menina que desde o ventre da mãe, exatamente a partir de um abril como este, testemunha e desfruta essa conquista: ter um lar seguro.

Longe das misérias, dos barulhos e das violências. Um privilégio que aqui próximo, ou distante, milhões de outras de mesma origem, infelizmente, não têm ou nunca tiveram condições de almejar.

Faz dez anos agora. Não foi nem tem sido fácil. Residir, e residir bem, no Corredor da Vitória? Paga-se um alto preço, em se levando em conta a nossa condição material de existência, assalariados que vivem apenas e tão-somente de seus proventos mensais.

Com tenacidade, fé, coragem, energia e sentimentos bons, é possível a qualquer pessoa alcançar o que deseja por meta.

Há perdas pelo caminho. Desgastes de relacionamentos com vizinhos e com quem se divide a cama. Há choro, lágrimas, ansiedade e insônia. Punhaladas! Isso faz parte, quando o objetivo é superar o limite que a estrutura da ordem socioeconômica nos quer impor por destino.

Na manhã de um sábado de abril de 2013, li anúncio de “vende-se um apartamento no Corredor da Vitória”, considerado um dos bairros da minoria “nobre” – e branca – da capital baiana.

Endereço de empresários da estirpe dos donos da Rede Bahia, os ACMs, milionários e gente da política ou do show business internacional. O líder de Lula no Senado, ex-governador Jacques Wagner, Ivete Sangalo, Gilberto Gil, Bell do Chiclete etc., etc., etc.

Uma das “zonas luminosas”, em contraste com as “zonas opacas”, na feliz classificação de Milton Santos. Conceituando a configuração das cidades, a exemplo de Frantz Fanon no seu livro Os condenados da terra.

As zonas luminosas contam com a presença positiva dos dispositivos de bem-estar oferecidos pelo Estado. As opacas carecem disso, abandonadas: o Estado chega aí como opressor ou oportunista.

Lia o jornal enquanto aguardava a hora de palestrar em evento no CEAS – Centro de Estudos e Ação Social, jesuíta, a convite de Primo Maldonado, dono da rede de livrarias LDM.

Pelo anúncio, o valor compatível à minha renda e o número de cômodos do imóvel eram similares ao de um apartamento em conjunto habitacional que já havia, por contrato, demonstrado interesse em adquirir. Este, localizado numa rua da parte baixa fronteiriça à encosta de São Lázaro, que alaga quando há tempestade, no bairro de Ondina (à época residíamos na região).

Mesmo o pagamento de um sinal de alguns milhares de Reais já havia adiantado ao corretor. Que, animado com o negócio, garantira sorridente “dar de graça” a decoração do quarto do bebê a nascer dali a dois meses.

Depois de refletir um pouco, peguei o celular e telefonei para o número anunciado de venda. Acertei a visita ao Corredor da Vitória para depois do compromisso no CEAS. Liguei para a então companheira, grávida de sete meses, para informá-la. Marcamos fazer juntos a visita.

A ferramenta chamada “GPS” não era disponível nos celulares, razão que nos fez dar algumas voltas de carro pela artéria do bairro “nobre”. Até, enfim, encontrarmos o endereço do prédio no qual havia o apartamento à venda.

Nos esperavam um senhor e uma senhora idosos, com uma filha já balzaquiana. Solícitos, nos apresentou o imóvel. Às traças, quase. Escuro. Deteriorado. Tinha uma área externa aberta ao céu, com plantas mal cuidadas, que davam para um terreno com mangueiras, abacateiros, bananeiras, goiabeira. Detritos acumulados.

Olhando a barriga da mulher grávida, projetei a criança que nasceria em breve brincando por ali.

Ao perceber o brilho em nossos olhos – à época nossos olhos cúmplices ainda brilhavam -, o proprietário vislumbrou escorchar. O valor publicado no anúncio de jornal estava errado: custava R$ 30.000 a mais do anunciado. Ao menos dois outros interessados estavam para fechar negócio nas próximas 72 horas, disse.

Como “gostou” desse casal negro – oh!, quão lindo! -, daria preferência a nós. Desde que depositássemos dali a dois dias em sua conta um sinal (com valor triplo daquele que adiantamos ao corretor de Ondina).

Aquele imóvel era o que Bartô, um amigo de profundo conhecimento da filosofia bantu, chamaria de “uma bolacha quebrada”. Há um pacote de bolachas inteiras, mas as quebradas no pacote, embora desprezadas ou rejeitadas, ainda assim são as mesmas bolachas – como se o comensal ao comer as inteiras não as quebrassem da mesma forma.

Foi assim, mangas arregaçadas, que banquei o investimento. Saímos da favela, que a mim deu “régua e compasso”, para ter como endereço um apartamento que fica exatamente em frente ao suntuoso e caríssimo endereço do compositor, cantor e membro da Academia Brasileira de Letras, Gilberto Gil.

Nossa filha, agora com 10 anos e alguns meses, tem um porto seguro. Como leonino, enfrento e enfrentarei todas e quaisquer barreiras e contrariedades, gosto ruins e energias desagregadoras que pretendam ameaçar esse estuário. Por vezes, e muitas vezes até, me fingindo de otário, covarde e zé-buceta.

Ameaças há, e várias! O vereador e ex-prefeito de Salvador Edvaldo Brito, como advogado e professor da Faculdade de Direito da UFBA, está me defendendo de uma dessas faz seis anos.

Quem me conhece, digo, quem conhece mesmo de verdade, desde o período de lutas no Calabar, sabe que tenho culhões. Não estou aqui para brincadeirinhas nem com a cara-metade. Alguns condôminos já o sabem, por medidas que tomei para proteger nossas integridades física e moral. A porretes, se for o caso.

Naquele período de favela minha querida mãe viúva, com sete filhos nas costas para criar, o que tinha era um barraco para nos abrigar. Sempre ameaçado por quedas e enchentes – ou pela iminente possibilidade de expulsão pelas “otoridades” de governo ou imobiliárias mancomunadas. A comunidade lutou e resistiu!

Respeitávamos e dávamos valor ao que tínhamos, porque era o possível a se ter. Somente dá valor ao que tem, quem lutou para conquistar. Quem não valoriza é porque não lutou para ter o que tem, apenas desfruta. Tenho dito em reuniões de condomínio, inclusive.