‘Assisti ao vídeo, mas precisei deixar passar algumas horas para refletir sobre tudo o que me veio à memória.
Primeiro foi um choque quando você se refere ao início dos anos 90. Me veio à lembrança você, jovem baiano arretado, entrando no Mestrado cheio de garra para ganhar a USP, sonho de muitos naquela época.

E eu começando a orientar. Ricardo Alexino chegou em 1988, meu primeiro orientando. E buscando um modelo de orientadora.
Não queria o modelo que eu conhecia de professores, sempre brancos, que faziam do negro objeto de pesquisa de suas teses – que deveriam ser distanciadas e objetivas.
Queria fazer ciência da comunicação, sim, num campo pouco ou nada explorado. Mas queria também mergulhar numa causa que há muito me incomodava, desde a minha graduação, e que eu não encontrara até então na ECA [Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo], terreno propício para ela.
Assim, encarei Ricardo, você e Joelzito [Araújo] para, juntos, encontrarmos esse caminho.
Não sei se consegui, mas levei ao Mestrado e Doutorado alunos de valor acadêmico e moral, que estão por ai disseminando.
Quando te vi (em vídeo em seu canal de Youtube) pensei no tempo que passou… Você deve estar perto dos 50 e, usando minha Antropologia Visual, vi em você um símbolo de que se rendeu às dores e amores de uma relação estável: o que mostra a aliança no seu dedo esquerdo. Desejo que esteja muito feliz.
Quanto à sua reflexão, embora absolutamente coerente com o que você sempre foi, me parece mais madura e um tanto menos esperançosa nas mudanças.
Me retirei de escrever, orientar… E finalmente me aposentei com uma sensação de dever feito, mas não percebendo mudança no racismo brasileiro.
As redes sociais parece que só fizeram o racismo se tornar mais explícito. Por outro lado, há ganhos, eu acho, na visibilidade dos negros na Mídia e em outros campos.
São conquistas individuais, sim, mas muitos deles denunciam racismo, e sabem que estão representando uma parte da nação brasileira sufocada e maltratada sempre.
Mais atores, jornalistas negros, músicos, rappers. Mas também professores, profissionais liberais que alcançaram grau universitário. Muitos pelos benefícios de políticas de acesso a universidades.
Mas você tem razão quando diz que não há um projeto político que una os negros. Stuart Hall mostra as clivagens que formam pessoas com identidades múltiplas e contraditórias, às vezes.
Muito contribui essa diversidade para a falta de um projeto político que una diferenças. Há ainda a questão das religiões evangélicas que proliferam nas categorias mais baixas e menos informadas da sociedade.
Enfim, Fernando, não falo mais porque acho que a palavra está com vocês para tentar entender e encontrar soluções para um problema que é de todos os brasileiros, brancos e negros, e que deveriam, por isso, lutar juntos.
Não falar nem escrever não quer dizer que me afastei do que sempre foi parte das minhas lutas na vida.
Lembro aquele dia no auditório da Folha*. Eu te consolei, sim, mas disse que você era um Kamikaze e nunca deixaria de ser. (rsrsrs).
*[Nota explicativa. A professora refere-se ao evento promovido pelo jornal Folha de S. Paulo em seu auditório na noite de 30/05/1995 (clique), intitulado “O movimento negro hoje”. Foram convidados Sueli Carneiro, do Instituto da Mulher Negra Geledés, João Jorge Rodrigues, atualmente presidente da Fundação Palmares do Ministério da Cultura lulista, e Hélio Santos, atualmente presidente da fundação Oxfam/Brasil.
[Além do autor dessas mal traçadas, representando o Núcleo de Consciência Negra na USP e o MPR, que trouxe ao Brasil o debate sobre as Reparações dos Afrodescendentes no Brasil. O auditório, majoritariamente ocupado por simpatizantes daqueles três antigos articuladores de entidades do movimento negro institucionalizado, não perdia a oportunidade de vaiar toda vez que este escrevinhador abria a boca para apresentar seus argumentos a favor de cotas e de reparações, obstruindo sua fala, para gáudio daqueles três. Solange Martins Couceiro de Lima, presente, testemunhou como convidada a situação antropofágica, ao final vindo consolar o divergente. É a isso que se refere em sua observação acima].
Lembrando ainda, só para cutucar o que nunca disse como orientadora: meus 3 melhores orientandos – Ricardo Alexino[1], Fernando Conceição e Joelzito Araújo[2] – nunca se entenderam muito bem.
Quanto a isso, não pude fazer nada!!!!!!
Abração, bjo.
– Solange. “
(11/11//2018)
[1]Ricardo Alexino Ferreira tornou-se professar na ECA/USP.
[2] Joel Zito Araújo tornou-se cineasta premiado Brasil e mundo afora.