A questão fora apresentada por Jürgen Habermas no profícuo debate com Joseph Ratzinger, realizado em Munique em 19/01/2004, a propósito dos fundamentos pré-políticos do Estado de direito liberal e democrático (Dialética da secularização, 2007).

O filósofo citava Ernest Böckenförd: “Será que o Estado liberal secularizado se alimenta de pressupostos normativos que ele próprio não é capaz de garantir?” (p. 23).

A pergunta retornou à mente deste que aqui escreve: para posicionar-se em defesa de uma estudante trans, além de trans auto identificada como negra, de uma universidade pública federal, no caso, a UFBA.

E, data vênia – deixe-me utilizar esse jargão à maneira dos maneirismos retóricos de colunista do influente jornal Folha de S. Paulo, professor da Faculdade de Comunicação onde a estudante é matriculada –, tentar um contraponto a seu artigo “A universidade e o tribunal identitário” (“Ilustrada”, p.C8, 20/09/2023).

CLICHÊ DOS ESCAPISTAS

Curiosa a sua tese, muito próxima da levantada há tempos no Brasil por Antonio Risério: movimentos identitários seriam uma ameaça à estabilidade vigente no contrato societário preexistente institucional. No caso em tela, o das universidades.

Em seu artigo, de circulação nacional, aquele colunista invoca um “bicho-papão”, à maneira das vovós para intimidar netinhos malcriados.

Por falta de substância argumentativa na defesa do corporativismo em prol de sua colega professora acusada de transfobia, apela para a demagogia antibolsonarista. É o clichê mais popular dos últimos tempos em nosso meio, um escapismo para quem acostumou-se à manipulação da verdade.

A universidade brasileira, diz a verve estridente do mequetrefe, sobreviveu ao bolsonarismo (referindo-se aos 4 anos de mandato presidencial de Jair Bolsonaro). Sobreviverá, continua, à pressão identitarista do tribunal de execução trans?

Trata-se aqui de uma falácia. A universidade brasileira desde sempre na curta história de sua existência vem sobrevivendo aos frequentes ataques dos governantes de plantão. Tanto as federais, como a UFBA, como as estaduais (ainda agora a USP entrou em mais uma greve). As estaduais da Bahia, criadas todas por ACM, são vilipendiadas pelos sucessivos governos nos recentes 18 anos (haja greves, também!).

Bolsonaro não está isolado nesse proceder malévolo.. Seus antecessores agiram de modo similar. Não esquecer o governo petista da presidente Dilma Rousseff. A greve geral nas universidades foi das mais duradouras de todos os tempos de democracia, ultrapassando mais de três meses consecutivos de paralisação. O que levou ao cancelamento puro e simples do semestre letivo.

Mas dizer-se antibolsonarista é grife. É chacoalhar uma moeda de troca para chantagear quem hoje opõe-se à sinecura que é a universidade “pública” brasileira, em péssima posição de qualidade comparada a pares mundo afora.

A UNIVERSIDADE GESTA, SEGURE

Ora, é no ventre das universidades, particularmente nas ciências humanas e sociais, nos chamados “estudos culturais”, que o discurso de afirmação de alteridades, de identidades múltiplas, tem frutificado. John M. Ellis explicou o fenômeno em Literature lost: Social agendas and the corruption of the humanities (1999).

Quando agora se sentem confrontados pelo identitariíssimo em sua faceta radical, os scholars dessas disciplinas, até ontem liberais progressistas modernosos, acionam seu arsenal argumentativo conservador.

Isto é antigo, como denota Hirschman (A retórica da reação, 1991). É a reação conservadora em curso, alheia à contemporaneidade e à expansão de direitos civis conquistados a duras penas por estratos sociais marginalizados.

Há mais de 21 anos na docência na mesma faculdade na qual o mencionado colunista é militante, sou testemunha das mudanças, avanços e retrocessos. O que se constata agora é que o perfil identitário estudantil, muito mais que dos docentes, mudou. Se diversificou escancaradamente.

A adoção de políticas de cotas – primeiramente sócio-“raciais” (na UFBA desde 2006), avançando nos recentes anos para outros estamentos historicamente excluídos de espaços de privilégios -, tornou real o que antes gente “ilustrada” defendia tão-somente como um princípio teórico do Estado liberal secularizado.

Em outras palavras, a universidade pública brasileira foi forçada a ser mais inclusiva e plural. Quem aqui escreve é um agente político que contribuiu para isso (busca no Google).

Não apenas negros e negras, indígenas e quilombolas tornaram-se sujeitos de políticas compensatórias de ingresso no espaço acadêmico pago pelo contribuinte. Cotas de diversidade de gênero foram instituídas.

Isso trouxe para a sala de aula um mosaico de novidades. Com o qual o establishment acadêmico jamais viu-se na contingência de ter de lidar.

Para complicar ainda mais as coisas: os gerentes das universidades “esqueceram” de mandar para sala de aula, em cursos de reciclagem pedagógica, os velhos (alguns velhacos) que pontificam há décadas na cátedra.

FALÁCIAS E CORPORATIVISMO

Resultado: a maioria de nós, além de perdida, está completamente despreparada para atuar, com respeito e dignidade à pessoa humana, nesse novo ambiente acadêmico.

Ser antibolsonarista não dá liberdade a ninguém para a prática de abusos, seja em nome do lulismo ou de práticas de racismos e crimes conexos. Sublinhe-se: Antibolsonarismo não é salvo-conduto acadêmico para retórica da reação do establishment.

No caso concreto abordado pelo colunista há indícios de extrapolação dos dois lados, a aluna e a quem a aluna acusa – que terá a oportunidade no curso das investigações de comprovar ser inocente.

O colunista mente em seu artigo ao inventar que colegas de sua colega não vieram a seu socorro, a seu apoio. Dá-se exatamente o contrário, como demonstrado em texto deste escrevinhador. O sindicato dos professores, alinhado à Reitoria, declarou-se publicamente ao lado da docente. O DCE, também alinhado, até hoje, ao que se sabe, nada fez pela aluna.

A professora acusada de transfobia e racismo pela aluna é vista, em cenas registradas em vídeo, reagindo com gestos e palavras nada favoráveis à conduta que se requer de alguém em funções docentes. Agravadas ainda pelo fato de ter cargo de chefia institucional: coordena a instância da Facom responsável pela vida acadêmica cotidiana de todos os estudantes da instituição no período do curso.

As cenas gravadas, não necessariamente as pinçadas pelo centurião da causa da colega, contrariam a narrativa do colunista.

Revelam o despreparo dela em administrar a crise na sala. Como mestre, sua condição de superioridade hierárquica exige compromisso ético incontornável.

Vê-se no pátio de entrada do prédio da Facom a catedrática gesticulando o punho fechado com um dedo em movimentos circulatórios ao redor de um lado da face. Fala em alto e bom som que a aluna “surtou”, seria uma louca.

Ou seja, jogou gasolina no fogo ante as diatribes, digamos assim, proferidas pela acusadora. Porém, bom senso e parcimônia de conduta são o que mais o momento exigiria de uma doutora.

ETOS DA ACADEMIA

O que se tem aqui é a proposição de Böckenförd. A reação de corporativismo para proteger um dos lados da contenda revela ser ainda falso no Brasil o axioma pelo qual a universidade garantiria pressupostos normativos liberais e democráticos, como a academia prega.

A geração do colunista, da qual faz parte o autor destas linhas, pertence a um tempo no qual a ciência obedecia à experiência e à observação. O que o olho enxergava diante de si.

O momento é de crise paradigmática. A pessoa trans, ainda que minoritária no conjunto, pretende romper os paradigmas estabelecidos. Daí a reação conservadora.

Sabedora de sua condição, a aluna procurou caminhos institucionais de apuração da conduta docente. Registrou queixas na polícia civil, no Ministério Público Federal e em instâncias de corregedoria universitária (atrelada ao status quo). Aguardemos os resultados, não apressemos o rio…

Cantora lírica desde os 15 anos, a pessoa que se diz ofendida estudou com professores da Haute École de Musique de Genève. Solista na Orquestra Juvenil, integrante do Núcleo de Ópera da Bahia, atuou, por exemplo, na ópera “Treemonmisha” (de Scott Joplin) e no oratório Ópera Junina, de Aldo Brizzi.

Finalizo lembrando o diálogo entre os antípodas intelectuais em Munique. Com a observação de Ratzinger (depois o Papa Bento XVI).

A mim me parece óbvio que a universidade (ele diz “ciência”) como tal não é capaz de produzir um etos. “Ou seja, uma consciência ética renovada não surgirá como fruto de debates científicos” (p.63).