André Setaro (1950-2014), de quem fui aluno na UFBA e, depois, amigo e colega na mesma faculdade, é um maiores críticos cinematográficos do Brasil. Do tempo em que se publicava crítica cultural independente, inteligente e séria nos jornais. Uma vez, para o alternativo Província da Bahia, onde mantinha uma coluna, vaticinou em artigo intitulado “A linguagem como expressão”:
“O que precisa ficar bem entendido é o seguinte: o que merece crédito na obra cinematográfica não é o que se diz ‘no‘ filme, mas, sim, o que o filme ‘diz‘”.
Cito Setaro porque, se respeito não tivesse por Dody Só, não perderia tempo em escrever o presente comentário sobre o filme-documentário “Senhor do Raso da Catarina”, de sua autoria. Há tantas e tantas coisas mais urgentes e problemáticas ocorrendo lá fora…
Roteirizado, produzido e dirigido por Dody, o filme, de 70 minutos, teve seu lançamento na noite de 15 de junho, em exibição para convidados numa das salas do Cine Glauber Rocha, centro antigo de Salvador. O público prestigiou a iniciativa. Lotou a referida sala até não mais caber, aplaudindo o cineasta, que ciceroneou a sessão com discurso na abertura.

Do que se trata? Franco Barreto, ainda vivo, mas hoje com saúde debilitada, é o “Senhor” ao qual Dody Só rende homenagem. Pelo fato de, como mentor e proprietário do bar “Quintal do Raso da Catarina”, ter feito parte da história da boêmia da capital baiana por mais de duas décadas, por todos os anos 80/90 e comecinhos dos 2000.
O documentário é sobre isso: o que Dody Só propôs-se dizer, e esconder, sobre Barreto e seu famoso bar.
Um dos mais conhecidos redutos de toda a malta de pensamento “revolucionário” que, noites e madrugadas adentro, ali, entre tragos de cachaça, cervejas, uísque e tira-gostos típicos, “derrubou” a ditadura militar em papos homéricos e altercações, além de paqueras.
Ali “lutou”-se, metafórica, etilicamente, pela restauração da democracia política no Brasil. Antes de regressar para casa, sozinha ou acompanhada, para no dia seguinte prosseguir no batente quase sempre enfadonho. Guardada por Deus, contando o vil metal…
O “Quintal do Raso da Catarina”, bem localizado em área nobre central de Salvador, foi esse oásis de boêmios, poetas, políticos, artistas, forasteiros.
Biriteiros e biriteiras da classe média, parcela da pequena burguesia supostamente intelectualizada à “esquerda”, de uma capital ainda não tomada pelo temor da violência gratuita, assaltos e achaques do governo “de esquerda” agora de plantão.
Para dizer sobre isso, o cineasta utiliza três recursos técnicos de filmagem. Primeiro: viaja com o protagonista à sede de Paulo Afonso, município do norte da Bahia onde Franco Barreto nasceu, para captar declarações do mesmo e algumas cenas da paisagem cingida pelo rio São Francisco.
Curiosa viagem, cujo roteiro inclui ainda os municípios de Canindé e até Piranhas, este no vizinho estado Alagoas. Mas o diretor e roteirista deixou de fora exatamente a localidade denominada Raso da Catarina, na qual Franco inspirou-se ao completar o nome de fantasia de seu bar “Quintal do Raso da Catarina”.
Localidade, o Raso da Catarina, que é um grande deserto ermo que abrange não somente Paulo Afonso, mas dois outros municípios do norte baiano, incluso Jeremoabo. Denominação derivada do senhor de terras, coronel e barão que em seus domínios protegeu o afamado Lampião, líder de um bando cangaceiro dos começos do século XX.
Dentro do Raso da Catarina, além da vegetação de caatinga e muita areia desértica, estão as comunidades indígenas dos Pankararé, que bem conheço por dever de ofício, às quais se chega não sem muita dificuldade de percurso.
A porta de entrada do Raso, onde termina a zona “civilizada”, é o Juá. Pequeno distrito de Paulo Afonso, de carro a menos de uma hora da sede. Este escrevinhador já ali fez várias idas e vindas: acadêmicas, jornalísticas e mesmo afetivas. No passado. Seria facílimo Dody Só fazer o mesmo no presente, ao lado de seu protagonista. Falha injustificável!
O segundo recurso técnico do diretor/roteirista foi entrevistar sobreviventes daquela época de ouro, uma dezena de habitués, ou nem tanto, do extinto bar de Franco Barreto. Há um problema de edição aí.
Como parte significativa das lembranças dessas pessoas coincide, levando-as à repetição quase ipsi litteris do que falam para a câmera, com a sucessão das entrevistas a narrativa quase fica cruciante. Pode-se melhorar, cortando o excesso de repetição, sem prejuízo do conjunto. Mesmo porque, alguns entrevistados entram desnecessariamente em vários momentos da montagem.
Por último, o diretor completa o projeto enxertando imagens, de arquivos de pessoas, locais e alguns recortes de notícias esparsas. Com isso procura ilustrar o que os entrevistados dizem do “Quintal” e da época na qual o empreendimento de Franco Barreto se inseriu na história soteropolitana.
A fotografia e a luz do filme, com os recursos técnicos de câmera e de edição hoje ao alcance de qualquer interessado, cumprem a promessa que se espera de um profissional formado na profissão. Dody Só é também ator, com papeis marcantes no cinema nacional (veja “Guerra de Canudos”, filme de Sérgio Rezende de 1997, depois série na TV Globo).
É isso o que se diz ‘no‘ filme. Em essência, uma rasgação de seda, elogio laudatório ao empresário e boêmio Franco Barreto.
Quando abriu seu bar sabia-se ser ele um funcionário público federal, quiçá também do estado, de alto salário e benefícios outros. Um sujeito bem relacionado com figuras distintas do mundinho político, do poder judiciário e de jornalistas. O bar era tão-somente uma diversão para ele, que sempre bebeu muito, e não vivia daquilo.
Desde o começo dos anos 2000 o bar de Franco fechou as portas. Quem não sabe disso, pelo documentário ficará não sabendo os detalhes. Mais: o filme de Dody omite as razões da extinção, ou falência, de um dos mais bem sucedidos locais da boêmia da cidade.
Por que deixou de existir o “Quintal do Raso da Catarina”? Essa pergunta Dody não faz a Franco. Nenhum dos outros entrevistados sequer tangencia o assunto.
O texto lido em off por narrador antes dos créditos finais – com agradecimentos a algumas figuras que bancaram parte dos custos do documentário, particularmente agentes do atual governo do Estado -, fixa-se em canonizar Franco Barreto. Tudo bem se o propósito era esse, mas em assim sendo o filme pouco nos diz.
Eu digo o que ouvi dizer, por noites e madrugadas quando ali frequentei, acompanhando a decadência do local. Ainda eram bons tempos, de boêmios como o jornalista codinominado “Irecê”, empregado da assessoria de comunicação da Assembleia Legislativa da Bahia, inveterado consumidor de garrafas de uísque on the rock. Já morreu, bote anos nisso!
Único freguês que, trôpego depois de secar sua garrafa, tinha o privilégio de deixar o bar por uma saída exclusiva dos fundos. Não como todos, subindo as escadarias (nas quais depois do porre muita gente tropeçava). Havia um portãozinho privado que dava acesso ao prédio onde “Irecê” residia, próximo à ladeira da Avenida do Contorno.
O garçom da madrugada – os saudosos Quitério, morto antes da pandemia, ou Zé, possivelmente vivo (ambos entrevistados por Dody) – abria aquela saída para “Irecê” descer e apenas atravessar a pista para estar em seu prédio em frente.
O espaço físico do bar era o quintal com mangueiras abaixo de uma escadaria de um antigo casarão – daí o nome “Quintal”, batizado por Franco Barreto. Tudo propriedade da Associação dos Engenheiros Agrônomos da Bahia, que alugou e Barreto completou o nome em lembrança de sua terra sertaneja.
No documentário não se diz que o inquilino entrou em litígio com a entidade de classe dos agrônomos por conta de divergências no contrato de arrendamento.
A briga foi judicializada por uma e por outra partes em disputa. Isso arrastou-se por década, devido aos recursos interpostos por advogados nas varas e tribunais. O que se dizia é que Franco Barreto suspendeu, inclusive, o pagamento devido pelo aluguel, apossando-se de uma área que não lhe pertencia. Dizia-se… Aqui repasso sem atestar.
Ao final e ao cabo, Franco foi derrotado. Não importou, por fim, a relação que mantinha com juízes ou mesmo desembargadores influentes que frequentavam seu bar. Foi despejado. Ele próprio passou a frequentar outros bares, esses não tão distintos quanto o seu um dia fora.
Por alguns anos o local ficou fechado, tomado por mato e lixo. Até que Jorge (de quê?, não me pergunte, mas a figura é simpática embora distante) e uma parceira sua alugaram o espaço – isso aí na metade da primeira década do ano 2000. Vêm mantendo-o, aos trancos e barrancos, sem o glamour do passado.
Rebatizaram o bar de simplesmente “O Quintal”, suprimindo o “Raso da Catarina”. Seu público é outro. Até porque os tempos também são outros. Gente de salto mais baixo, muito menos eriçada, sem pavonices.
Permitiram acesso a Dody Só para a realização ali das filmagens, cenário principal do documentário. Ofereceram um coquetel depois da avant-première do filme, na noite de 15 de junho.
Vale assistir o resultado da criação do cineasta Dody Só, guardados os devidos senões. Que em trabalhos vindouros ele esteja mais atento não apenas aos detalhes, mas ao conteúdo da obra. Se quiser florescer de forma diferenciada entre os competidores à espreita.
Passo para agradecer. A crítica é o que nos faz crescer.